18.5.07
Sobre Coimbra
Publicado no Diário de Notícias de 7/11/1983, este artigo, da autoria de Soares Rebelo, procurava ilustrar as características temporais e intemporais de Coimbra. Quase um quarto de século depois, ao lê-lo, fiquei mais espantado com as semelhanças que encontro com a Coimbra actual do que com as diferenças. Crescemos, formou-se uma nova geração. A cidade cresceu fisicamente, através de operações urbanísticas quase sempre duvidosas. Mas, na essência, o que mudou?

"Cidade medieval, bairros antigos sobre um rio e...pomares"
"Fechada por séculos em si mesma, revendo-se, como que adoemecida, na sua Universidade, nas suas tradições e praxes académicas, não se abrindo ao progresso, marginalizando os agentes económicos, Coimbra, auto-suficiente nas suas capas e batinas, borlas e capelos, aluguer de quartos à estudantada, esqueceu-se de si própria, atingindo o Séc. XX inapelavelmente ultrapassada, empobrecida, provinciana
'A terra que vos pinto, meus amigos/ é terra de cantares/ cidade medieval, bairros antigos/ sobre um rio de pomares.'
Coimbra teve em Silva Gaio, poeta de alma ingénua e entusiástica, um dos seus mais dedicados bardos, o Mondego, um dos seus maiores biografos. Mas não só: Camões, Antero, Eça, Régio; Nobre, Torga, entre muitos outros altos vultos das letras lusíadas, dedicaram-lhe igualmente páginas inflamadas de incontida admiração.. Paisagem 'incantatória', cidade obra de arte ('Florença Morena lhe chamaria Veva de Lima), centro privilegiado de cultura e civilização, não admira que o lirismo, em mais que um tempo, em mais que um espaço, a tenha transformado, de facto, num espírito.
Ainda hoje, aliás, tal se verifica. Do Minho ao Algarve, no Brasil, nos países africanos de expressão portuguesa, mesmo em Macau, enfim, onde quer que se encontre um antigo estudante de Coimbra, a 'mística' permanece, a cidade revive. Omnipresente em vastíssima memória, quem por lá passou, quem lhe frequentou as escolas, quem lhe calcorreou a Alta e a Baixa, lhe saboreou as irreverências, viveu os êxitos ou amargou os insucessos da velha Associação Académica, jamais, por certo, a esqueceu - jamais, por certo, a esquecerá.
Quilómetros de 'sebenta', toneladas de praxe
Foram, no entanto, como diria Mário Braga, séculos de cultura fradesca, quilómetros de sebenta, toneladas de praxe a molar-lhe o ideal, a desenhar-lhe o perfil, a imipor-lhe, quisesse ou não, o estatuto de alma-mater, musa do país. E, severamente tutelada pela Universidade com a sua negra torre, donde partiam, segundo Antero, o 'preceito' da Roma jesuítica do século XVIII e o badalar da velha 'cabra', espalhando nos espíritos o 'terror disciplinar de quartel', assim se foi quedando no tempo, auto-suficiente nas suas capas e batinas, no aluguer de quartos à estudantada, vibrando com as suas fogueiras, os bolinhos e bolinhós, a Queima, a Rainha Santa, as rimas dos seus poetas-cantores, a praxe, os fados e guitarradas.
Tal espírito era realmente tudo; havia, portanto, que preservá-lo, transmiti-lo, incólume, de geração em geração, pouco importando, na circunstância, como também denunciaria Quental, o autoritarismo das escolas, anulando toda a liberdade e resistência moral; o favoritismo dos lentes, deprimindo, acostumando o homem a temer, a disfarçar, a vergar a espinha: o literatismo, representado na horrenda sebenta, na exigência do 'ipsis verbis', para quem toda a criação intelectual é daninha; o foro universitário tão anacrónico como as velhas alabardas dos verdiais que o mantinham; a'chamada, os lentes crassos e crúzios, o praxismo dos seus 'pais novos'...
Só que, fechada em si mesma, revendo-se, como que adormecida, na sua Universidade, nas suas tradições académicas, esqueceu-se de si própria, atingindo o século XX inapelavelmente ultrapassada, empobrecida, provinciana. Que mais é hoje realmente, passo o exagero, 'que quadro' de Gaio: uma 'cidade medieval, bairros antigos sobre um rio e pomares'? Dita dos doutores, os seus burgueses pouco por ela fizeram: desmotivados, os futricas foram deixando andar, poucos se empenhando com o progresso comunitário, com o desenvolvimento sócio-económico, a exploração mais adequadas das suas múltiplas potencialidades. E o resultado está à vista.
Vítimas, tal como tudo, afinal, que é província neste país, da macrocefalia nacional, tesmosa na manutenção do seu estatuto 'sui generis' de cidade universitária, acomodada à sombra tutlelar da velha torre, acabou, inclusivamente, por permitir que se fosse esbatendo a imagem de 'cidade sempre moça, onde a alma, de viver, se não fartava'. Falha de iniciativa e poder de conquista, deixou que os ultrajes do tempo e do destino, a incúria dos homens e as sucessivas más gestões municipais a decompusessem, lhe corroessem a traça, lhe empobrecessem a existência."
(...)
"Cidade medieval, bairros antigos sobre um rio e...pomares"
"Fechada por séculos em si mesma, revendo-se, como que adoemecida, na sua Universidade, nas suas tradições e praxes académicas, não se abrindo ao progresso, marginalizando os agentes económicos, Coimbra, auto-suficiente nas suas capas e batinas, borlas e capelos, aluguer de quartos à estudantada, esqueceu-se de si própria, atingindo o Séc. XX inapelavelmente ultrapassada, empobrecida, provinciana
'A terra que vos pinto, meus amigos/ é terra de cantares/ cidade medieval, bairros antigos/ sobre um rio de pomares.'
Coimbra teve em Silva Gaio, poeta de alma ingénua e entusiástica, um dos seus mais dedicados bardos, o Mondego, um dos seus maiores biografos. Mas não só: Camões, Antero, Eça, Régio; Nobre, Torga, entre muitos outros altos vultos das letras lusíadas, dedicaram-lhe igualmente páginas inflamadas de incontida admiração.. Paisagem 'incantatória', cidade obra de arte ('Florença Morena lhe chamaria Veva de Lima), centro privilegiado de cultura e civilização, não admira que o lirismo, em mais que um tempo, em mais que um espaço, a tenha transformado, de facto, num espírito.
Ainda hoje, aliás, tal se verifica. Do Minho ao Algarve, no Brasil, nos países africanos de expressão portuguesa, mesmo em Macau, enfim, onde quer que se encontre um antigo estudante de Coimbra, a 'mística' permanece, a cidade revive. Omnipresente em vastíssima memória, quem por lá passou, quem lhe frequentou as escolas, quem lhe calcorreou a Alta e a Baixa, lhe saboreou as irreverências, viveu os êxitos ou amargou os insucessos da velha Associação Académica, jamais, por certo, a esqueceu - jamais, por certo, a esquecerá.
Quilómetros de 'sebenta', toneladas de praxe
Foram, no entanto, como diria Mário Braga, séculos de cultura fradesca, quilómetros de sebenta, toneladas de praxe a molar-lhe o ideal, a desenhar-lhe o perfil, a imipor-lhe, quisesse ou não, o estatuto de alma-mater, musa do país. E, severamente tutelada pela Universidade com a sua negra torre, donde partiam, segundo Antero, o 'preceito' da Roma jesuítica do século XVIII e o badalar da velha 'cabra', espalhando nos espíritos o 'terror disciplinar de quartel', assim se foi quedando no tempo, auto-suficiente nas suas capas e batinas, no aluguer de quartos à estudantada, vibrando com as suas fogueiras, os bolinhos e bolinhós, a Queima, a Rainha Santa, as rimas dos seus poetas-cantores, a praxe, os fados e guitarradas.
Tal espírito era realmente tudo; havia, portanto, que preservá-lo, transmiti-lo, incólume, de geração em geração, pouco importando, na circunstância, como também denunciaria Quental, o autoritarismo das escolas, anulando toda a liberdade e resistência moral; o favoritismo dos lentes, deprimindo, acostumando o homem a temer, a disfarçar, a vergar a espinha: o literatismo, representado na horrenda sebenta, na exigência do 'ipsis verbis', para quem toda a criação intelectual é daninha; o foro universitário tão anacrónico como as velhas alabardas dos verdiais que o mantinham; a'chamada, os lentes crassos e crúzios, o praxismo dos seus 'pais novos'...
Só que, fechada em si mesma, revendo-se, como que adormecida, na sua Universidade, nas suas tradições académicas, esqueceu-se de si própria, atingindo o século XX inapelavelmente ultrapassada, empobrecida, provinciana. Que mais é hoje realmente, passo o exagero, 'que quadro' de Gaio: uma 'cidade medieval, bairros antigos sobre um rio e pomares'? Dita dos doutores, os seus burgueses pouco por ela fizeram: desmotivados, os futricas foram deixando andar, poucos se empenhando com o progresso comunitário, com o desenvolvimento sócio-económico, a exploração mais adequadas das suas múltiplas potencialidades. E o resultado está à vista.
Vítimas, tal como tudo, afinal, que é província neste país, da macrocefalia nacional, tesmosa na manutenção do seu estatuto 'sui generis' de cidade universitária, acomodada à sombra tutlelar da velha torre, acabou, inclusivamente, por permitir que se fosse esbatendo a imagem de 'cidade sempre moça, onde a alma, de viver, se não fartava'. Falha de iniciativa e poder de conquista, deixou que os ultrajes do tempo e do destino, a incúria dos homens e as sucessivas más gestões municipais a decompusessem, lhe corroessem a traça, lhe empobrecessem a existência."
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