31.7.06

Bollywood no Raj Mandir



A experiência de ir ver um filme de Bollywood na Índia começa pela sala de cinema em si. Ainda existem aquelas salas antigas, enormes. Autênticos templos do cinema, que concedem ao filme em exibição uma aura de importância. Segundo o guia "Lonely Planet", o Raj Mandir, em Jaipur, é o mais magnífico de todos, "assemelhando-se a um gigante bolo cremoso, com um 'foyer' algures entre um templo e a Dysneilândia".
Havia quatro castas de bilhetes: "Diamond" (77 rupias), "Emerald" (52), "Ruby" (32) e "Pearl" (20). Comprei o mais caro (pouco mais do que um euro), localizado numa espécie de segundo balcão. O cinema, com capacidade para 2000 pessoas, estava quase cheio e o arrumador indicou-me um lugar ao lado de uma mulher. Sentei-me e ficou perturbada, falando em hindi com ele e dizendo-me em inglês que aquele era o seu lugar. Reparei, depois, que as pessoas se sentavam por forma a não haver nenhuma mulher que ficasse ao lado de estranhos. Imaginemos uma família composta por um casal e dois filhos: o pai ficaria numa ponta, a mãe e a irmã no meio e o irmão sentar-se-ia na outra ponta, por forma a proteger as donzelas de qualquer interferência exterior. O arrumador descortinou outro lugar, ao lado de dois jovens estudantes de contabilidade, que logo meteram conversa:
- Percebes o hindi?
- Não, apenas gosto de ver as imagens.



O episódio da mulher que achava intrusivo que um estranho se sentasse ao seu lado é sintomático. A Índia é um país de casamentos arranjados, onde o contacto entre rapazes e raparigas é reprimido. Por isso, nos arraiais de rua, os adolescentes dançam uns com os outros e fazem saltos acrobáticos ao som de música hindi-techno. Elas assistem a uma distância segura. Por isso, os filmes de Bollywood são uma fantasia cheia de insinuações sexuais e comportamentos que não são permitidos na realidade. As actrizes são beldades que usam uma indumentária muito reduzida.
O filme (um grande sucesso intitulado "Dhoom") compreendia-se sem perceber a língua. Era básico, mas animado e tecnicamente bem feito. A historia de um gang de motoqueiros e do policia que os persegue e, claro, prende no fim. As cenas de acção são totalmente inverosímeis e surgem entre episódios musicais. É ai que irrompem as beldades, para gáudio da multidão, que aplaude e exorta. Dançam para os protagonistas nas mais diversas situações: numa praia, sob uma chuva torrencial que faz os biquínis ficarem transparentes; na rua; em volta da cama marital... A popularidade destes filmes deve-se, creio eu, a esse exibicionismo feminino. Os homens (a grande maioria da audiência) vêem ali o que dificilmente vêem noutro lado. Depois há a festa, a musica, as cenas de porrada delirantes.



Um aspecto curioso é que, volta e meia, os actores falam inglês. No meio da algaraviada hindi, percebo um nítido "I love you" ("amo-te") ou a pergunta "are you having fun?" ("estás a divertir-te?"), entre muitas outras expressões anglófonas. Segundo os estudantes, "é uma moda". Falar em inglês e vestir roupas ocidentais é visto como algo de estiloso pelos jovens mais urbanos.
Os filmes são geralmente longos, portanto subsiste o velhinho intervalo que já caiu em desuso em Portugal. No intervalo vai-se ao “foyer” socializar. Para os bilhetes mais caros há um bar exclusivo, situado numa sala alcatifada e com aspecto confortável. Há quadros bonitos nas paredes e os empregados usam "papillon". As conversas ali iniciadas podem continuar no decorrer do filme. Na Índia não existem avisos para que se desliguem os telemóveis a partir do início da sessão. As pessoas atendem chamadas com toda a naturalidade, aplaudem, comentam alto cenas do filme, dialogam.

[Crónica publicada em 2005]

24.7.06

Raul Seixas

Raul Seixas foi um dos maiores letristas que jamais cantaram em português. As suas letras são caracterizadas por um onirismo delirante mesclado com crítica social. A música vai buscar inspiração ao rock, mas também ao género baião e a outros sons brasileiros. O resultado é único, inconfundível. Em Portugal, onde permanece pouco conhecido, o que tivemos de mais parecido foi o António Variações, que andava "entre Braga e Nova Iorque". Três letras para exemplificar, entre muitas outras igualmente inspiradas que poderia ter escolhido:



Gita

Por: Raul Seixas e Paulo Coelho (sim, esse, o escritor...)

"Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando,
Foi justamente num sonho que ele me falou"

Às vezes você me pergunta
Por que é que eu sou tão calado
Não falo de amor quase nada
Nem fico sorrindo ao teu lado

Você pensa em mim toda hora
Me come, me cospe, me deixa
Talvez você não entenda
Mas hoje eu vou lhe mostrar

Eu sou a luz das estrelas
Eu sou a cor do luar
Eu sou as coisas da vida
Eu sou o medo de amar

Eu sou o medo do fraco
A força da imaginação
O blefe do jogador
Eu sou eu fui eu vou


Gita

Eu sou o seu sacrifício
A placa de contramão
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição

Eu sou a vela que acende
Eu sou a luz que se apaga
Eu sou à beira do abismo
Eu sou o tudo e o nada


Por que você me pergunta
Perguntas não vão lhe mostrar
Que eu sou feito da terra
Do fogo, da água e do ar

Você me tem todo dia
Mas não sabe se é bom ou ruim
Mas saiba que eu estou em você
Mas você não está em mim

Das telhas eu sou o telhado
A pesca do pescador
A letra arde em meu nome
Dos sonhos eu sou o amor

Eu sou a dona de casa
Nos pegue-pagues do mundo
Eu sou a mão do carrasco
Sou raso, largo, profundo

Gita

Eu sou a mosca da sopa
E o dente do tubarão
Eu sou os olhos do cego
E a cegueira da visão

Mas eu sou o amargo da língua
A mãe, o pai e o avô.
O filho que ainda não veio
O início, o fim e o meio (2x)



Metamorfose Ambulante

Por: RAUL SEIXAS

Prefiro ser essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator

É chato chegar a um objetivo num instante
Eu quero viver essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou
Hoje eu sou estrela amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator

Eu vou desdizer aquilo tudo que eu lhes disse antes
Prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo




Eu Também Vou Reclamar

Por: Raul Seixas - Paulo Coelho

Mas é que se agora
Pra fazer sucesso, pra vender disco
de protesto
Todo mundo tem que reclamar
Eu vou tirar meu pé da estrada
E vou entrar também nessa jogada
E vamos ver agora que é que vai aguentar
Porque eu fui o primeiro
E já passou tanto janeiro
Mas se todos gostam eu vou voltar
Estou trancado aqui no quarto
De pijama porque tem visita estranha
na sala
Aí, eu pego e passo a vista no jornal
Um piloto rouba um "mig"
Gelo em Marte, diz a viking
Mas no entanto não há galinha em
meu quintal
Compro móveis estofados
Me aposento com saúde
Pela assistência social
Dois problemas se misturam
A verdade do Universo
A prestação que vai vencer

Entro com a garrafa de bebida enrustida
Porque minha mulher não pode ver
Ligo o rádio e ouço um chato
Que me grita nos ouvidos
Pare o mundo que eu quero descer

Olhos os livros na minha estante
Que nada dizem de importante
Servem só pra quem não sabe ler
E a empregada me bate à porta
Me explicando que está toda torta
E já que não sabe o que vai dar pra mim comer
Falam em nuvens passageiras
Mandam ver qualquer besteira
E eu não tenho nada pra escolher
Apesar dessa voz chata e renitente
Eu não "tô" aqui aqui pra me queixar
E nem sou apenas o cantor
Que eu já passei por Elvis Presley, imitei
Mr. Bob Dylan, you know
Eu já cansei de ver o sol se pôr
Agora eu sou apenas um latino-americano
Que não tem cheiro nem sabor
E as perguntas continuam
Sempre as mesmas, quem eu sou
De onde eu venho
Aonde onde eu vou dar
E todo mundo explica tudo
Como a luz acende como um avião
pode voar
Ao meu lado um dicionário
Cheio de palavras
Que eu sei que nunca vou usar
Mas agora eu também resolvi
Dar uma queixadinha
Porque eu sou um rapaz
Latino-americano que também sabe se
lamentar
E sendo nuvem passageira
Não me leva nem à beira disso tudo
Que eu quero chegar

E fim de papo

17.7.06

"El campo de batalla de casi todas las guerras"



Artigo de opinião publicado no jornal El Mundo de 15/07:

"Desde hace demasiado tiempo, 1974 inicio de lo que se suponía era una guerra civil, el Líbano era en realidad un pequeño, lujoso y no tan exclusivo campo de batalla. Primero la Guerra Fría, después se convirtió en la nada disimulada ambición del vecino siro, que nunca ha reconocido la independencia y soberanía del Líbano que hoy sigue cuestionando. Irak, Irán, Siria y otros actores internacionales han usado el territorio de la diminuta y frágil república levantina para dirimir sus diferencias, combatirse y atacarse o para sacar provecho económico, especialmente Siria.

¿Pero cómo empieza esta crisis? El mismo día en que el régimen ultra islamista de Irán rechaza la oferta de la UE, la OIEA (Organización Internacional de la Energía Atómica) y buena parte de Occidente, para solucionar la crisis provocada por la irresponsable y peligrosa escalada nuclear iraní Hizbollah atacó posiciones militares israelíes dentro de Israel, asesinó a ocho soldados y secuestró a dos. Irán domina a Hizbollah, y su único aliado real en el Mundo Árabe es Siria, que ha sido también central en la escalada de esta crisis. El objetivo era muy claro: servir los intereses de sus amos iraníes y desviar la atención de lo que de verdad era importante para ellos, ganar tiempo en la crisis nuclear con Occidente. Sería conveniente que los analistas internacionales y los principales gobiernos del mundo entendiesen que esta es una partida de varios tableros que algunos juegan haciendo trampas o dando un puñetazo a la mesa. Esto es exactamente lo que está ocurriendo ahora mismo e Oriente Próximo.

Hizbollah tiene que decidir de una vez qué quiere ser, un partido político que representa una ideología extremadamente ultraconservadora y rígida, o bien un grupo terrorista, que es, además, la única milicia libanesa que no se ha desarmado desde el final de la guerra civil en 1989. ¿Quién va a mandar de verdad en Hizbollah, Nasrrallah el incendiario y fanático secretario general de la organización o Fadllallah, el más presentable y menos flamígero líder espiritual? Nada parece augurar que la sensatez acabe prevaleciendo en la organización ultrarradical chií libanesa, especialmente mientras los intereses iraníes sean los que de hecho son.

El Líbano es un pequeño país del que casi todo el mundo ha abusado, recientemente se cansó de la dominación de potencias extranjeras y, como consecuencia del asesinato del ex primer ministro Hariri, por cierto musulmán sunní, como determina su constitución y el Pacto Nacional de 1943, provocó una ejemplar reacción de musulmanes y cristianos que se echaron a la calle de forma masiva y pacífica exigiendo el fin de la presencia de Siria, su ejército y sus servicios de inteligencia en suelo libanés. Millón y medio de personas de una población de cinco millones se manifestaron, y la minúsculas contra manifestaciones, violentas y sanguinarias (murieron docenas de manifestantes) fueron protagonizadas por Hizbollah.

Hoy los libaneses que han sido víctimas de la violencia de Hizbollah lo vuelven a ser, pues los ataques israelíes están afectando a millones de personas inocentes que no sólo no tienen nada que ver con la organización radical sino que son firmes opositores a la misma. Yo no pongo en duda el derecho de defenderse, especialmente después de sufrir un ataque unilateral sin que mediase provocación alguna, sin embargo las medidas tomadas por el ejecutivo de Ehud Olmert son desproporcionadas, indiscriminadas y muy probablemente, ineficaces. La reacción israelí hubiese debido centrarse en objetivos claramente vinculados a la organización terrorista y no a los que han afectado gravemente a la población civil libanesa y que han causado decenas de víctima civiles. Ése no es el camino, eso no es aceptable.

Desde estas mismas páginas advertía yo a principios de enero de este año que se estaba produciendo una muy peligrosa confluencia de graves crisis en la región y que cualquier chispa, por pequeña que fuese, podría acabar incendiando la zona. No pueden imaginar hasta qué punto lamento haber tenido razón. Combatamos todos al extremismo, seamos implacables con el terrorismo, pero no afectemos a las poblaciones civiles que son y han sido en el pasado las principales víctimas de la violencia y el terror de Hizbollah. Aquí el pagano más claro es el libanés de la calle, dominado y vigilado por Siria, golpeado por el terror, afectado por la profunda inestabilidad regional y, ahora, pagando las consecuencias de una crisis lejana y ajena."

Gustavo Arístegui es diplomático y portavoz de Exteriores del Partido Popular. Su padre, Pedro Manuel de Aristegui, embajador de España en el Líbano fue asesinado en Beirut en marzo de 1989.

12.7.06


Tsotsi, filme sul-africano realizado em 2005 por Gavin Hood, vencedor do Oscar para o melhor filme estrangeiro. No calão de Joanesburgo, tsotsi significa gangster.

4.7.06

fragmentos estilhaços granadas


Acabou de sair o livro "fragmentos estilhaços granadas" (Palimage Editores), de Ricardo Marques. Meu contemporâneo, conterrâneo, amigo, Ricardo consegue (talvez sem o saber, ou sem ter essa intenção) retratar a nossa cidade de forma subtil. Ali está o que Coimbra pode fazer aos seus melhores, como Coimbra é um sítio onde não se deve envelhecer. O andar às voltas em becos sem saída, a poesia (quase) suicidária... Alguns excertos:

9... na invisibilidade do possível...

Ele sabe que nasceu fora do tempo e do contexto no parágrafo errado da história certa para ser lida a qualquer criança que sonhe em dormir ele atravessa a ponte vislumbrando o rio débil fio de água para a sede do gigante que não se vê ele vive na invisibilidade do possível mas como já não há heróis ele apenas nevega na impossibilidade das coisas.


21... minete ao Diabo

Escuta está frio demais para me contentar com o calor do teu amor que não existe na televisão uma orgia de três mulheres e dois homens não aquece nem arrefece um filme polaco dobrado em espanhol os gemidos espraiam-se sais de qualquer maneira para o velho bar que está para abrir falência já não tens jeito ao balcão Deus não é uma mulher que tu possas seduzir desesperado e triste contentas-te com um minete ao Diabo.


23... espera pelo amanhã quando este se lembrar de ser ontem...

Noite falta de talento do que escreve estas histórias banais de dor de corno espera o telefonema de alguém que não telefona pois já morreu o tempo passa por cima destas linhas com a consciência de que nenhuma das palavras lhe sobrevirá estás sozinho não é novidade para a garrafa de vodka mas está demasiado frio e todos os cafés fecharam.
Espera pelo amanhã quando este se lembrar de ser ontem.



[Contracapa]



24... a jovem R...

A jovem R sorriu quando me viu no teatro com os seus olhos verdes e quando me viu minutos depois no passeio escuro sorriu outra vez comentando que já era a segunda e eu sorri com os meus olhos pretos nebulosos e baços pensando que a podia arrastar junto a mim e dar-lhe então o que ela queria ou que precisave mas... é claro que eu não sabia o que a jovem R queria ou que precisava mas podia ser mesmo aquilo que se faz que se pensa em qualquer passeio escuro pois este é o meu poema e nele tudo é possível.
E foi isso que fiz.


36... para que as feras adormecidas venham beber no teu leito...

Nada que existe que antes não se tenha imaginado imagino-te assim passeando na solidão do passeio que ladeia o rio da nossa cidade está calor e está seco da mesma maneira que a fonte também secou mas a sede é ainda imensa a nossa sede é ainda imensa e não se satisfaz com água pés e com guaranás continua assim espera que então anoiteça para que as feras adormecidas venham beber no teu leito.


38... lábios coxas óculos escuros boca...

Suicido-me lentamente escrevendo poemas na falta de uma vida o café a colher dissolve lá fora o limão corta a heroína por que é que eu me ralo se o dia chega ou não a acabar por que é que as palavras apenas escondem o que nunca é dito entra a actriz do vestido vermelho e riso vermelho lábios coxas óculos escuros boca mas as cortinas deste teatro nunca se levantaram também eu assim como outros enganados batendo palmas ao cair do pano.


39... não basta...

Alguns dias são do anjo outros são do abismo outros são de coisa nenhuma outros são de nenhuma coisa outros são de coisa alguma outros são de alguma coisa.

Só que mesmo assim não basta.

[sublinhados do autor]

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