22.5.07

Coimbra é uma lição

11.05.2007, Jornal Público, Carlos Fiolhais

"É pela cultura ou pela falta dela que as cidades de hoje se salvam ou se perdem. Há não uma mas duas Coimbras, uma do sonho e outra da tradição. A situação é - tem sido - um pouco esquizofrénica. Há a Coimbra do Dr. Jekyll e há uma outra do Mr. Hyde. Há quem sonhe em juntar a ciência à história para saber mais sobre os restos mortais de D. Afonso Henriques usando as mais modernas técnicas de antropologia forense e há quem defenda a tradição da inviolabilidade do túmulo do rei fundador receando a reedição na Igreja de Santa Cruz da "maldição dos faraós". Há quem organize exposições com o melhor da arte fotográfica contemporânea e quem não só as deixe abandonadas no Centro de Artes Visuais sem a conveniente publicitação, como também deixe abandonada a instalação de Pedro Cabrita Reis logo à entrada desse centro. Há quem organize na universidade um notável Encontro Internacional de Poetas e há quem se contente todos os anos com uma feira do livro provinciana numa barraca (grande barraca!) com espectáculos folclóricos. Há quem goste das músicas da Brigada Vítor Jara e de J. P. Simões, mas há quem prefira tomar chá animado por Marco Paulo e saltar numa chinfrineira nocturna animada por Quim Barreiros, o eterno convidado da Queima das Fitas. Há quem seja capaz de recuperar o "Laboratório Chimico" pombalino e aí colocar uma espectacular exposição sobre a luz e a matéria e há quem deixe esvanecer a memória do grande homem da ciência que foi o prof. Mário Silva (o monumento em sua homenagem está entregue às urtigas!). Há quem admire o belo casario da cidade, de cima da ponte "Pedro e Inês", no Parque Verde, e há quem, daí, não se assuste ao olhar o desvario urbanístico dos Jardins do Mondego. Há quem goste de se inebriar com os encantos gastronómicos da Quinta das Lágrimas e há quem não repare que o eixo pedonal da cidade não tem um único restaurante decente. Há quem venha aos meetings do Centro Internacional de Matemática ou do Centro de Neurociências e há quem não veja a necessidade de um Centro de Congressos e da respectiva capacidade hoteleira. Há quem ajude no boom de novas empresas tecnológicas na informação e na saúde e há quem não se admire com a inexistência de um parque industrial com dimensão suficiente para abrigar as fornadas de jovens empreendedores que todos os anos saem das universidades. Há quem venha transplantar o coração ao Centro de Cirurgia Cardiotorácica dos Hospitais da Universidade, mas há também quem não se indigne com a falta de dignidade das instalações do Hospital Pediátrico. Há quem se empenhe numa candidatura ganhadora a Património Mundial da Humanidade e há quem não queira sequer competir com outras cidades históricas que cuidam dos seus centros.
Digamos que uma é Coimbra A e outra é Coimbra B, a Estação Nova e a Estação Velha (a propósito, não estará a Estação Velha a precisar de reforma?). São duas cidades que, por força da partilha do mesmo espaço, têm de conviver uma com a outra, mas que são obrigadas a ignorar-se, tal é o desajuste de projectos.
O problema, como alguns dos exemplos apontados dão a entender, é acima de tudo cultural. É pela cultura ou pela falta dela que as cidades de hoje se salvam ou se perdem. Uma cidade que, para o bem e para o mal, foi sempre um símbolo da cultura ou sabe escolher a cultura de que quer ser símbolo, ou não conseguirá sair do seu actual desconforto. Remeter a maior fatia de responsabilidade da sua malaise para a acção ou inacção do Governo central, este ou os anteriores, é ser incapaz de um auto-exame sério.
Claro que o Governo central também tem responsabilidades em alguns dos despautérios do Centro, que são também despautérios nacionais. De resto, o país não estaria mal se o confronto entre o sonho e a tradição, com a tradição a ganhar (a antiguidade é um posto!), fosse apenas em Coimbra. A cidade dá uma boa imagem do país que somos, um país de grandes contrastes e onde coabitam ambições muito diferentes. Para se perceber Portugal não há nada como vir ao Centro. Coimbra é uma lição!
Professor universitário (tcarlos@teor.fis.uc.pt)
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