9.8.06
Sobre a Ciência
«Não basta ler nos jornais, não basta sequer ver nos noticiários da televisão. É preciso ver "em directo" e, se calhar, em pessoa. A intensidade, o fervor, a voz tremente não enganam: o primeiro-ministro está apaixonado.
Guterres não estava apaixonado pela Educação; era tudo uma fita. Mas Sócrates, manifestamente, está apaixonado pela Ciência (com maiúscula), está doido por ela, está a morrer por ela.
Como os políticos do século XIX estavam apaixonados pelo Progresso (com maiúscula). Sócrates, claro, ainda não conhece muito bem a Ciência e, às vezes, parece que a confunde com a Tecnologia ou o ID ou o Ensino Superior. De qualquer maneira, sua e chora de paixão. Quando fala dela, fica lírico.
Fontes desvairava com o comboio (grande invenção, o comboio), Sócrates desvaira agora com a Internet (grande invenção, a Internet) e a Assembleia da República, tímida com tanto sentimento, assiste embasbacada e aprovadora. Quem não aprovaria?
De longe, em casa e numa idade céptica, um indivíduo, evidentemente, suspeita. Alguém tem de fazer o papel de sogra e ver se a Ciência é o que Sócrates, no seu ardor, pensa que ela é.
E não é. Para começar, Sócrates não imagina o que a Ciência obrigatoriamente desperdiça em dinheiro, em trabalho e em tempo para chegar a um qualquer insignificante e duvidoso resultado. Os milhões que lhe prometeu (250) não são nada para ela; e os 5000 bolseiros também não. Pior do que isso: a Ciência não se dirige (com "contratos-programa" ou seja como for) e quando se tenta dirigir ela amua e seca.
Em suma, a Ciência precisa de um primeiro-ministro rico com um país riquíssimo, e Sócrates, coitado, anda por aí a contar tostões. Se ele julga, porque o dr. Mariano Gago lhe disse, que Portugal vai ganhar algum coisa com a Ciência, acaba com certeza a sofrer muito. Nem a Europa inteira, como se sabe, a consegue sustentar decentemente, quanto mais Sócrates com um centésimo do nosso esquelético Orçamento. E a Tecnologia? E o ID? O ID depende de uma espécie de empresas, que em Portugal não existem ou quase não existem. As poucas que há são tão surpreendentes que o Presidente e o primeiro-ministro as gabam e admiram como um prodígio cósmico. Para o resto, para a massa inerte que perdura na penúria e no hábito, o ID é um absurdo metafísico. Falta a Tecnologia que sob o largo e obscuro nome de Ciência, Sócrates também ama. A Tecnologia, sim, importada, copiada, bem ou mal usada, e só acidentalmente portuguesa, sempre serve para a Pátria se ir arrastando com dificuldade atrás da "Europa". Mas não justifica a paixão do primeiro-ministro. Essa paixão que se anuncia camiliana e fatal. Como a de Fontes pelo progresso e pelo comboio.»
in Público, Vasco Pulido Valente, 31/03/06
Guterres não estava apaixonado pela Educação; era tudo uma fita. Mas Sócrates, manifestamente, está apaixonado pela Ciência (com maiúscula), está doido por ela, está a morrer por ela.
Como os políticos do século XIX estavam apaixonados pelo Progresso (com maiúscula). Sócrates, claro, ainda não conhece muito bem a Ciência e, às vezes, parece que a confunde com a Tecnologia ou o ID ou o Ensino Superior. De qualquer maneira, sua e chora de paixão. Quando fala dela, fica lírico.
Fontes desvairava com o comboio (grande invenção, o comboio), Sócrates desvaira agora com a Internet (grande invenção, a Internet) e a Assembleia da República, tímida com tanto sentimento, assiste embasbacada e aprovadora. Quem não aprovaria?
De longe, em casa e numa idade céptica, um indivíduo, evidentemente, suspeita. Alguém tem de fazer o papel de sogra e ver se a Ciência é o que Sócrates, no seu ardor, pensa que ela é.
E não é. Para começar, Sócrates não imagina o que a Ciência obrigatoriamente desperdiça em dinheiro, em trabalho e em tempo para chegar a um qualquer insignificante e duvidoso resultado. Os milhões que lhe prometeu (250) não são nada para ela; e os 5000 bolseiros também não. Pior do que isso: a Ciência não se dirige (com "contratos-programa" ou seja como for) e quando se tenta dirigir ela amua e seca.
Em suma, a Ciência precisa de um primeiro-ministro rico com um país riquíssimo, e Sócrates, coitado, anda por aí a contar tostões. Se ele julga, porque o dr. Mariano Gago lhe disse, que Portugal vai ganhar algum coisa com a Ciência, acaba com certeza a sofrer muito. Nem a Europa inteira, como se sabe, a consegue sustentar decentemente, quanto mais Sócrates com um centésimo do nosso esquelético Orçamento. E a Tecnologia? E o ID? O ID depende de uma espécie de empresas, que em Portugal não existem ou quase não existem. As poucas que há são tão surpreendentes que o Presidente e o primeiro-ministro as gabam e admiram como um prodígio cósmico. Para o resto, para a massa inerte que perdura na penúria e no hábito, o ID é um absurdo metafísico. Falta a Tecnologia que sob o largo e obscuro nome de Ciência, Sócrates também ama. A Tecnologia, sim, importada, copiada, bem ou mal usada, e só acidentalmente portuguesa, sempre serve para a Pátria se ir arrastando com dificuldade atrás da "Europa". Mas não justifica a paixão do primeiro-ministro. Essa paixão que se anuncia camiliana e fatal. Como a de Fontes pelo progresso e pelo comboio.»
in Público, Vasco Pulido Valente, 31/03/06