24.5.06
"Não há álibi histórico para o pessimismo português"
Entrevista de Alexandra Lucas Coelho ao historiador António Hespanha, revista Pública (Maio de 2006)
A má relação dos portugueses com Portugal não tem continuidade histórica,diz António Hespanha. Há uma cultura de irresponsabilidade, mas de quem manda.Portugal é bom para uma elite e uma porcaria para a maioria. A imagem que temos de nós é volátil e depende dos media.
Uma pesquisa recente diz que 85 por cento dos portugueses não se interessam por Portugal, e que se o país fosse uma marca estava condenada porque ninguém investiria nela. É histórica a má relação dos portugueses com Portugal?
Não. Não há uma "psicologia dos povos", nunca foram absolutamente homogéneos e hoje o são cada vez menos. De resto, a História está a perder o impacto sobre as crenças do presente. Se houver um legado histórico — a imagem que os portugueses se habituaram a ter sobre si próprios, sobre os seus vizinhos, os espanhóis —, está a ser corroído pelo impacto quotidiano dos media. Nós hoje somos, acreditamos, queremos o que as imagens nomeadamente da TV nos propõem — que pode ser também uma imagem da História: a televisão todos os dias diz coisas sobre o que os portugueses são historicamente. As imagens que hoje temos de nós, da família, da pátria,do homem, da mulher, são extremamente fugazes, recompõem-se a um ritmo quase diário. Podem encontrar-se continuidades, mas mais impressionistas do que bem fundadas. Por exemplo, podemos dizer que este eventual pessimismo de hoje tem continuidade com o pessimismo dos "Vencidos da Vida", em finais do século XIX [Ramalho Ortigão,Oliveira Martins, Eça de Queirós]. Ou até com coisas anteriores, como o sebastianismo.
Onde poderíamos datar o começo desse pessimismo? Pós-Descobrimentos?
É muito difícil fazer esse tipo de raciocínio. Os "Vencidos da Vida", que eram um grupo muito restrito, tinham um discurso decadentista sobre o país. Mas na mesma altura uma célebre princesa europeia [Ratazzi] que visitou Portugal diz que "Les portugais sont toujours gais". Não encontrou os vencidos da vida, encontrou outros, se calhar os que estavam pior, mas que tinham deles próprios uma imagem que fazia com que estivessem sempre alegres. E se fosse mais para trás, para o sebastianismo, encontrava porventura pessoas com atitude saudosista, esperando um futuro melhor — isso estava também ligado a correntes religiosas, a um misticismo. E outras, que achavam que estava tudo bem, para quem o que interessava era o presente. Acho que hoje é a mesma coisa.
Portanto, Alcácer Quibir não marca o início de um sentimento de "naufrágio".
Nem hoje a maior parte dos portugueses sabe o que é Alcácer Quibir. E se recuar na História, muitíssimo menos! Há a célebre história do rei D. Luís, que fazia oceanografia. Saiu com o seu iate, encontrou uns pescadores no mar da Póvoa de Varzim e perguntou-lhes: "Então vocemessês são portugueses ou espanhóis?", e eles responderam: "Não sabemos meu senhor, nós somos da Póvoa do Varzim." Presumirmos que os portugueses andavam com Alcácer Quibir, o D. Sebastião, etc, na cabeça é uma ilusão. São quase sempre tradições cultas, eruditas. Não populares.
Foi presidente das Comemorações dos Descobrimentos, evocados pelo senso comum como o momento da expansão, em que os portugueses olharam para a frente, se atreveram e ousaram. São uma espécie de álibi de orgulho que temos?
Que alguns têm. Se for perguntar aí pelas ruas pelos Descobrimentos, gostaria de saber quantas pessoas sabem ao certo o que foi isso. E depois, quantas pessoas, sabendo, têm uma imagem positiva sobre isso.
Os Descobrimentos correspondem a um momento de excepção? A um momento inevitável? Ao pico de uma História que é tudo o que nos resta além do clima?
Não há uma explicação única, decorreram de muitas coisas. Quando tenho cá um estrangeiro e quero que ele aprenda um bocadinho o espírito do país...
Então há um espírito do país...
Touché... Isto que digo é absolutamente arbitrário... Adiante... Levo-o ao Cabo Espichel e digo: "Estás a ver? Aqui acabou a Europa, e do lado de trás estava um vizinho que não nos deixava expandir..." Politicamente [o que determina os Descobrimentos] é isso, o vizinho que estava do outro lado, sendo o mar o lado misterioso, mas aberto. Ao nível dos pescadores, metiam-se nos seus barquitos, iam até ali adiante, mais um bocado, vender mais umas coisas, pescar mais longe, depois até ao Norte de África, depois descendo para ver o que havia para lá daquele cabo, etc, etc. A geografia pedia isso. O mar não é tão bravo e as pessoas iam indo. Os historiadores hoje estão mais ou menos de acordo em que o grande "plano das Índias" não existia. Até porque, na cartografi a, as Índias, a Etiópia eram lugares difusos, que não se sabia bem onde estavam. Índias era praticamente tudo para além do Equador, ou da parte conhecida de África. O rei de Portugal, como qualquer rei da Europa, queria aumentar o seu poder. Assenhoriar-se de novas terras era uma hipótese. Várias foram testadas. Agora, que tenha sido o génio da raça que puxava para o mar... é extremamente arriscado dizer isso numa base científica. Numa base poética está bem, Fernando Pessoa, António Nobre, "O meu país de naus, de esquadras e
de frotas! / Oh as lanchas dos poveiros...". Mas ele [Nobre] numa coisa tinha razão. As naus e frotas surgem dessa experiência quotidiana muito simples do poveiro que ia pescar sardinha, e depois vai um bocadinho mais adiante, compra umas coisas aqui e vende outras ali.
"Houve um tempo em que fomos ousados, tivemos coragem, e hoje não..." É comum esta ideia. Mas, olhando para as condicionantes dos Descobrimentos, esse momento não tem que corresponder a uma ousadia última do espírito do povo.
Não. Ousados somos nós várias vezes, até muito depois disso. Aquela gente [dos Descobrimentos] foi ousada, claro, aquilo era arriscado. Mas ousados foram os emigrantes portugueses dos anos 60, que saíam daqui para Paris, sem saberem uma palavra de francês, iam a salto. E logo a seguir ia a família, os vizinhos! Conheci um emigrante que estava há dez anos na Alemanha, já não trabalhava, era um velhote que tinha ido com os fi lhos, não sabia uma palavra de alemão, ia aos supermercados, via os preços, via as coisas... Isto é que é uma ousadia brutal! Uma ousadia de milhares e milhares, de certeza absoluta envolvendo mais gente do que no período áureo dos Descobrimentos.
Qual é a diferença entre estas duas ousadias?
Uma deu visibilidade, do ponto de vista mundial, trouxe riqueza e fama. Ficou como uma marca do génio da raça. A outra trouxe também riqueza, mas aos bocadinhos, repartida pelos pobres. Aconteceu porque o país não funcionava. Como a primeira. Por que é que as pessoas saem nos Descobrimentos? Os nobres porque viam na expansão a ocasião de prestar os serviços ao rei de que dependiam os benefícios e mercês. O povo porque cá passava fome, quando não era forçado a embarcar. Dos dias mais trágicos e perigosos de Lisboa para um pobre eram os anteriores à partida das frotas para a Índia. A polícia da altura apanhava os homens na rua para os meter à força nas esquadras, porque não havia gente que quisesse ir. Em grande parte, o pessoal de marinhagem era negro, escravos, mas não chegava. Devido às monções, havia um curto prazo em que tinha de se completar a tripulação, então prendiam-se as pessoas na rua. Portanto, não era uma coisa assim tão ufana, um grande momento de coragem e ousadia. Uns, sim, embarcavam por gosto, pela honra da Casa ou por serem aventureiros, outros porque sabiam que lá se podia ganhar dinheiro fácil...
Depois o terramoto e o pombalismo que efeitos têm?
Que relação se pode estabelecer entre o pombalismo e este espírito do povo?... O pombalismo pela primeira vez tenta fazer reformas internas — da agricultura, das pescas do Algarve, das vinhas do Alto Douro, imensas coisas. Reconstrói Lisboa porque houve um terramoto, mas há terrinhas pequenas que também são reconstruídas, Vila Real de Santo António, Porto Côvo, e que têm uma estrutura geométrica como a de Lisboa. Essas reformas foram traumatizantes para uma certa quietude de espírito que existia.
E que sempre existiu?
O geral dos países é essa quietude, a mudança é uma coisa que assusta. Mas pode ter havido em Portugal aspectos que fomentaram o conservadorismo, como a unanimidade religiosa, o facto de não ter havido lutas religiosas entre nós. Noutros países houve mudanças desse tipo, entre protestantes, católicos, judeus, agnósticos ou ateus, que provocaram uma imagem mais móvel da fé. Entre nós, isso não existiu, por causa da Inquisição, etc. Talvez tenha tornado as pessoas mais quietas.
E o isolamento geográfico não determina também um espírito do povo?
É verdade, mas pode-se ver a coisa de outro ponto de vista. Os portugueses não têm cá dentro essa confusão religiosa, linguística, étnica mesmo, de outros povos da Europa. Mas é um povo que tem experiências do além-mar e do exotismo como outros não têm. Sempre houve, a partir do século XVII, muita gente que tinha conhecidos no Brasil, que traziam de lá histórias, ou na Índia e na China, que importavam imagens e modas, conhecimentos e exeperiências. Portanto a inquietude podia provir da importação do exótico. No fundo não é um isolamento. O Atlântico não era uma barreira, pelo contrário, era uma estrada. Estamos no fim da Europa, isso sim. E há coisas muito interessantes na cultura portuguesa. É pouco europeia. Os reis espanhóis coleccionavam obras de arte, os ingleses também, para já não falar dos italianos. Aqui, a corte era de grande rusticidade e pobreza.
Refere-se a que época?
Aos séculos XVII e XVIII. Há correspondência entre aquela que veio a ser mulher de D. José I e a sua mãe, que era uma Farnese, além do mais rainha de Espanha, mulher de Filipe V — sabia o que era arte, decoração, vestuário de corte, pintura. A filha, que veio para cá menina, queixava-se que a corte de Lisboa era uma maçada, que não havia distracções nenhumas, não havia tecidos, para a mãe mandar umas peças para ela fazer vestidos, para lhe mandar um pintor para lhe pintar o retrato, que havia bailes mas os homens dançavam com os homens e as mulheres com as mulheres, que a única coisa que a deixavam fazer era chegar à janela do quarto e atirar aos pardais, e depois a tarde era passada com a sogra a visitar igrejas...
Portanto, aquele luxo e sofi sticação da corte de Versalhes ou de Madrid, do Escorial, ou de Inglaterra, ou de pequenas cortes italianas, não existia em Lisboa.E porquê?
Porque o gosto predominante em Portugal nas camadas cultas era o oriental. Os portugueses não coleccionavam quadros mas coleccionavam jóias, por exemplo, trazidas da Índia, ou coisas estranhas, como leques do Japão, ovos de avestruz, conchas, mobília indiana. O próprio Brasil ou Luanda estavam cheias de produtos asiáticos. O nosso gosto está longe do europeu e isto também contribuiu para o isolamento. Havia grandes tragédias familiares quando um soldado português, do século XVII, por exemplo, ia para a Flandres lutar nos tércios, e não havia uma tragédia tão grande se ele ia para a Índia, era um destino normal.
Parece haver uma espécie de fatalismo do insucesso de Portugal. No estudo referido, os portugueses acham que a sua vida pessoal e profissional está bem e que o país é que está mal. Dados da Comissão Europeia entretanto revelados prevêem que o rendimento médio dos portugueses será o mais baixo dos 25 em 2050, porque estamos mais velhos, temos menos filhos e produzimos menos. Mas os portugueses parecem estabelecer sempre esta diferença: uma coisa é a minha vida, o meu trabalho, o que produzo; outra coisa é o país. Como se o país fosse uma espécie de entidade abstracta, culpada de tudo, uma corja.
Bem, os portugueses têm razão para pensar isso.
Não é uma desresponsabilização?
Não, não é. Ou antes: é — porque isso é mesmo assim. Este país é uma porcaria para a maior parte dos portugueses e é um país óptimo para uma pequena parte. E os portugueses sabem isso.
Faz sentido a separação: eu faço o meu, o país é que não funciona?
Faz.
O país não é cada um de nós?
Não. A capacidade de cada um mudar o país é mínima. O que nos resta é fazer o melhor pelo país, no nosso canto, porque quanto à vida colectiva não se consegue fazer nada. O país hoje vive nesta situação. A maior parte acha, e tem razões para achar, que o país é uma porcaria, porque é o mais pobre da Europa, o mais injusto — onde os ricos são mais ricos e os pobres são mais pobres —, e é dos países onde, por razões não só económicas mas até culturais, a maioria tem menos poder de modificar as coisas.
Voltamos ao princípio. Historicamente, como é que chegámos aqui?Às vezes a História é muito curta. Tenho-me dedicado ultimamente ao século XIX, e olho para o que se passava na segunda metade e a situação era exactamente a mesma, no sentido em que havia uma pequena elite, que governava o país, com um umbiguismo, um egoísmo enormes, falando com ela própria, e depois havia a grande massa, que não governava, nem ninguém esperava que governasse e que, ela própria, já tinha desistido. São os tais poveiros, segundo o Oliveira Martins, a quem se pede tudo — os impostos, etc — mas não se dá nada, e que não contam para nada, só em dia de eleições. Hoje, do ponto de vista dos poveiros, ou seja, da generalidade das pessoas, passa-se exactamente o mesmo: não tenho esperança nenhuma de mudar o país. O que quero é aquilo que depende de mim, que a minha actividade como professor seja do melhor. Mais do que isso... creio que não posso, que não tenho força, como a maior parte não tem.
Portanto, temos um país com a sociedade mais pobre de Europa, muitíssimo injusta e impotente. E por que é que isto não rebenta?
Teoricamente é uma situação muito parecida com a da América do Sul, onde há uma tendência proto-revolucionária. Por que é que essa tendência não se passa cá? Primeiro, porque — é o discurso oficial — estamos no primeiro mundo, onde essas coisas não acontecem . Segundo, porque se criou uma certa mitologia de que todos compartilham de um mundo em que o sucesso é possível. Portugal é o país em que há mais jogadores no Euromilhões. Depois temos o Euro 2004, com toda a gente a pôr bandeiras nas janelas. Sim, mais os programas dos famosos, em que o próprio programa faz o famoso, a fama é gratuita... tudo isto são mitos que no fundo despoletam, ou esvaziam, a tensão.
Há um momento na História em que isto tenha começado a ser assim?
Acho que não. É uma História muito recente, não vejo raízes muito profundas para isto. O nosso pessimismo não tem álibi histórico. Estabeleceu-se um modo de vida caracterizado pela irresponsabilidade, mas é uma irresponsabilidade de quem manda. Tivemos uma oportunidade no 25 de Abril que deu... Deu nisto. Deu na irresponsabilidade. De quem? Quando se ouve falar de falta de produtividade nos media o que lá está subliminarmente dito é que é porque se trabalha pouco, porque há muitos feriados, porque há muitas baixas. Mas não se diz que nos países bem organizados os portugueses são considerados os melhores trabalhadores e não andam a chorar porque há poucos feriados. O problema está em cima. Quando quem manda não sabe mandar é o que dá. Irresponsabilidade é quando cai uma ponte e ninguém é responsável, quando faltam os deputados mas com umas justificações manhosas já se arruma tudo...
Não há uma explicação histórica para este pessimismo, este insucesso?
Não. É uma criação de hábitos contemporâneos. É do momento. Já vivi em Portugal, no 25 de Abril, momentos de grande esperança. No dia seguinte a um clube português ganhar, Portugal está cheio de força. Acho que não há continuidade de um pessimismo ao longo da História. Até porque a memória hoje é muito volátil, está sujeita a um bombardeamento intensíssimo. Uma semana de televisão varre toda a História.
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Entrevista de Alexandra Lucas Coelho ao historiador António Hespanha, revista Pública (Maio de 2006)
A má relação dos portugueses com Portugal não tem continuidade histórica,diz António Hespanha. Há uma cultura de irresponsabilidade, mas de quem manda.Portugal é bom para uma elite e uma porcaria para a maioria. A imagem que temos de nós é volátil e depende dos media.
Uma pesquisa recente diz que 85 por cento dos portugueses não se interessam por Portugal, e que se o país fosse uma marca estava condenada porque ninguém investiria nela. É histórica a má relação dos portugueses com Portugal?

Onde poderíamos datar o começo desse pessimismo? Pós-Descobrimentos?
É muito difícil fazer esse tipo de raciocínio. Os "Vencidos da Vida", que eram um grupo muito restrito, tinham um discurso decadentista sobre o país. Mas na mesma altura uma célebre princesa europeia [Ratazzi] que visitou Portugal diz que "Les portugais sont toujours gais". Não encontrou os vencidos da vida, encontrou outros, se calhar os que estavam pior, mas que tinham deles próprios uma imagem que fazia com que estivessem sempre alegres. E se fosse mais para trás, para o sebastianismo, encontrava porventura pessoas com atitude saudosista, esperando um futuro melhor — isso estava também ligado a correntes religiosas, a um misticismo. E outras, que achavam que estava tudo bem, para quem o que interessava era o presente. Acho que hoje é a mesma coisa.
Portanto, Alcácer Quibir não marca o início de um sentimento de "naufrágio".
Nem hoje a maior parte dos portugueses sabe o que é Alcácer Quibir. E se recuar na História, muitíssimo menos! Há a célebre história do rei D. Luís, que fazia oceanografia. Saiu com o seu iate, encontrou uns pescadores no mar da Póvoa de Varzim e perguntou-lhes: "Então vocemessês são portugueses ou espanhóis?", e eles responderam: "Não sabemos meu senhor, nós somos da Póvoa do Varzim." Presumirmos que os portugueses andavam com Alcácer Quibir, o D. Sebastião, etc, na cabeça é uma ilusão. São quase sempre tradições cultas, eruditas. Não populares.
Foi presidente das Comemorações dos Descobrimentos, evocados pelo senso comum como o momento da expansão, em que os portugueses olharam para a frente, se atreveram e ousaram. São uma espécie de álibi de orgulho que temos?
Que alguns têm. Se for perguntar aí pelas ruas pelos Descobrimentos, gostaria de saber quantas pessoas sabem ao certo o que foi isso. E depois, quantas pessoas, sabendo, têm uma imagem positiva sobre isso.
Os Descobrimentos correspondem a um momento de excepção? A um momento inevitável? Ao pico de uma História que é tudo o que nos resta além do clima?
Não há uma explicação única, decorreram de muitas coisas. Quando tenho cá um estrangeiro e quero que ele aprenda um bocadinho o espírito do país...
Então há um espírito do país...
Touché... Isto que digo é absolutamente arbitrário... Adiante... Levo-o ao Cabo Espichel e digo: "Estás a ver? Aqui acabou a Europa, e do lado de trás estava um vizinho que não nos deixava expandir..." Politicamente [o que determina os Descobrimentos] é isso, o vizinho que estava do outro lado, sendo o mar o lado misterioso, mas aberto. Ao nível dos pescadores, metiam-se nos seus barquitos, iam até ali adiante, mais um bocado, vender mais umas coisas, pescar mais longe, depois até ao Norte de África, depois descendo para ver o que havia para lá daquele cabo, etc, etc. A geografia pedia isso. O mar não é tão bravo e as pessoas iam indo. Os historiadores hoje estão mais ou menos de acordo em que o grande "plano das Índias" não existia. Até porque, na cartografi a, as Índias, a Etiópia eram lugares difusos, que não se sabia bem onde estavam. Índias era praticamente tudo para além do Equador, ou da parte conhecida de África. O rei de Portugal, como qualquer rei da Europa, queria aumentar o seu poder. Assenhoriar-se de novas terras era uma hipótese. Várias foram testadas. Agora, que tenha sido o génio da raça que puxava para o mar... é extremamente arriscado dizer isso numa base científica. Numa base poética está bem, Fernando Pessoa, António Nobre, "O meu país de naus, de esquadras e
de frotas! / Oh as lanchas dos poveiros...". Mas ele [Nobre] numa coisa tinha razão. As naus e frotas surgem dessa experiência quotidiana muito simples do poveiro que ia pescar sardinha, e depois vai um bocadinho mais adiante, compra umas coisas aqui e vende outras ali.
"Houve um tempo em que fomos ousados, tivemos coragem, e hoje não..." É comum esta ideia. Mas, olhando para as condicionantes dos Descobrimentos, esse momento não tem que corresponder a uma ousadia última do espírito do povo.
Não. Ousados somos nós várias vezes, até muito depois disso. Aquela gente [dos Descobrimentos] foi ousada, claro, aquilo era arriscado. Mas ousados foram os emigrantes portugueses dos anos 60, que saíam daqui para Paris, sem saberem uma palavra de francês, iam a salto. E logo a seguir ia a família, os vizinhos! Conheci um emigrante que estava há dez anos na Alemanha, já não trabalhava, era um velhote que tinha ido com os fi lhos, não sabia uma palavra de alemão, ia aos supermercados, via os preços, via as coisas... Isto é que é uma ousadia brutal! Uma ousadia de milhares e milhares, de certeza absoluta envolvendo mais gente do que no período áureo dos Descobrimentos.
Qual é a diferença entre estas duas ousadias?
Uma deu visibilidade, do ponto de vista mundial, trouxe riqueza e fama. Ficou como uma marca do génio da raça. A outra trouxe também riqueza, mas aos bocadinhos, repartida pelos pobres. Aconteceu porque o país não funcionava. Como a primeira. Por que é que as pessoas saem nos Descobrimentos? Os nobres porque viam na expansão a ocasião de prestar os serviços ao rei de que dependiam os benefícios e mercês. O povo porque cá passava fome, quando não era forçado a embarcar. Dos dias mais trágicos e perigosos de Lisboa para um pobre eram os anteriores à partida das frotas para a Índia. A polícia da altura apanhava os homens na rua para os meter à força nas esquadras, porque não havia gente que quisesse ir. Em grande parte, o pessoal de marinhagem era negro, escravos, mas não chegava. Devido às monções, havia um curto prazo em que tinha de se completar a tripulação, então prendiam-se as pessoas na rua. Portanto, não era uma coisa assim tão ufana, um grande momento de coragem e ousadia. Uns, sim, embarcavam por gosto, pela honra da Casa ou por serem aventureiros, outros porque sabiam que lá se podia ganhar dinheiro fácil...
Depois o terramoto e o pombalismo que efeitos têm?
Que relação se pode estabelecer entre o pombalismo e este espírito do povo?... O pombalismo pela primeira vez tenta fazer reformas internas — da agricultura, das pescas do Algarve, das vinhas do Alto Douro, imensas coisas. Reconstrói Lisboa porque houve um terramoto, mas há terrinhas pequenas que também são reconstruídas, Vila Real de Santo António, Porto Côvo, e que têm uma estrutura geométrica como a de Lisboa. Essas reformas foram traumatizantes para uma certa quietude de espírito que existia.
E que sempre existiu?
O geral dos países é essa quietude, a mudança é uma coisa que assusta. Mas pode ter havido em Portugal aspectos que fomentaram o conservadorismo, como a unanimidade religiosa, o facto de não ter havido lutas religiosas entre nós. Noutros países houve mudanças desse tipo, entre protestantes, católicos, judeus, agnósticos ou ateus, que provocaram uma imagem mais móvel da fé. Entre nós, isso não existiu, por causa da Inquisição, etc. Talvez tenha tornado as pessoas mais quietas.
E o isolamento geográfico não determina também um espírito do povo?
É verdade, mas pode-se ver a coisa de outro ponto de vista. Os portugueses não têm cá dentro essa confusão religiosa, linguística, étnica mesmo, de outros povos da Europa. Mas é um povo que tem experiências do além-mar e do exotismo como outros não têm. Sempre houve, a partir do século XVII, muita gente que tinha conhecidos no Brasil, que traziam de lá histórias, ou na Índia e na China, que importavam imagens e modas, conhecimentos e exeperiências. Portanto a inquietude podia provir da importação do exótico. No fundo não é um isolamento. O Atlântico não era uma barreira, pelo contrário, era uma estrada. Estamos no fim da Europa, isso sim. E há coisas muito interessantes na cultura portuguesa. É pouco europeia. Os reis espanhóis coleccionavam obras de arte, os ingleses também, para já não falar dos italianos. Aqui, a corte era de grande rusticidade e pobreza.
Refere-se a que época?
Aos séculos XVII e XVIII. Há correspondência entre aquela que veio a ser mulher de D. José I e a sua mãe, que era uma Farnese, além do mais rainha de Espanha, mulher de Filipe V — sabia o que era arte, decoração, vestuário de corte, pintura. A filha, que veio para cá menina, queixava-se que a corte de Lisboa era uma maçada, que não havia distracções nenhumas, não havia tecidos, para a mãe mandar umas peças para ela fazer vestidos, para lhe mandar um pintor para lhe pintar o retrato, que havia bailes mas os homens dançavam com os homens e as mulheres com as mulheres, que a única coisa que a deixavam fazer era chegar à janela do quarto e atirar aos pardais, e depois a tarde era passada com a sogra a visitar igrejas...
Portanto, aquele luxo e sofi sticação da corte de Versalhes ou de Madrid, do Escorial, ou de Inglaterra, ou de pequenas cortes italianas, não existia em Lisboa.E porquê?
Porque o gosto predominante em Portugal nas camadas cultas era o oriental. Os portugueses não coleccionavam quadros mas coleccionavam jóias, por exemplo, trazidas da Índia, ou coisas estranhas, como leques do Japão, ovos de avestruz, conchas, mobília indiana. O próprio Brasil ou Luanda estavam cheias de produtos asiáticos. O nosso gosto está longe do europeu e isto também contribuiu para o isolamento. Havia grandes tragédias familiares quando um soldado português, do século XVII, por exemplo, ia para a Flandres lutar nos tércios, e não havia uma tragédia tão grande se ele ia para a Índia, era um destino normal.
Parece haver uma espécie de fatalismo do insucesso de Portugal. No estudo referido, os portugueses acham que a sua vida pessoal e profissional está bem e que o país é que está mal. Dados da Comissão Europeia entretanto revelados prevêem que o rendimento médio dos portugueses será o mais baixo dos 25 em 2050, porque estamos mais velhos, temos menos filhos e produzimos menos. Mas os portugueses parecem estabelecer sempre esta diferença: uma coisa é a minha vida, o meu trabalho, o que produzo; outra coisa é o país. Como se o país fosse uma espécie de entidade abstracta, culpada de tudo, uma corja.
Bem, os portugueses têm razão para pensar isso.
Não é uma desresponsabilização?
Não, não é. Ou antes: é — porque isso é mesmo assim. Este país é uma porcaria para a maior parte dos portugueses e é um país óptimo para uma pequena parte. E os portugueses sabem isso.
Faz sentido a separação: eu faço o meu, o país é que não funciona?
Faz.
O país não é cada um de nós?
Não. A capacidade de cada um mudar o país é mínima. O que nos resta é fazer o melhor pelo país, no nosso canto, porque quanto à vida colectiva não se consegue fazer nada. O país hoje vive nesta situação. A maior parte acha, e tem razões para achar, que o país é uma porcaria, porque é o mais pobre da Europa, o mais injusto — onde os ricos são mais ricos e os pobres são mais pobres —, e é dos países onde, por razões não só económicas mas até culturais, a maioria tem menos poder de modificar as coisas.
Voltamos ao princípio. Historicamente, como é que chegámos aqui?Às vezes a História é muito curta. Tenho-me dedicado ultimamente ao século XIX, e olho para o que se passava na segunda metade e a situação era exactamente a mesma, no sentido em que havia uma pequena elite, que governava o país, com um umbiguismo, um egoísmo enormes, falando com ela própria, e depois havia a grande massa, que não governava, nem ninguém esperava que governasse e que, ela própria, já tinha desistido. São os tais poveiros, segundo o Oliveira Martins, a quem se pede tudo — os impostos, etc — mas não se dá nada, e que não contam para nada, só em dia de eleições. Hoje, do ponto de vista dos poveiros, ou seja, da generalidade das pessoas, passa-se exactamente o mesmo: não tenho esperança nenhuma de mudar o país. O que quero é aquilo que depende de mim, que a minha actividade como professor seja do melhor. Mais do que isso... creio que não posso, que não tenho força, como a maior parte não tem.
Portanto, temos um país com a sociedade mais pobre de Europa, muitíssimo injusta e impotente. E por que é que isto não rebenta?
Teoricamente é uma situação muito parecida com a da América do Sul, onde há uma tendência proto-revolucionária. Por que é que essa tendência não se passa cá? Primeiro, porque — é o discurso oficial — estamos no primeiro mundo, onde essas coisas não acontecem . Segundo, porque se criou uma certa mitologia de que todos compartilham de um mundo em que o sucesso é possível. Portugal é o país em que há mais jogadores no Euromilhões. Depois temos o Euro 2004, com toda a gente a pôr bandeiras nas janelas. Sim, mais os programas dos famosos, em que o próprio programa faz o famoso, a fama é gratuita... tudo isto são mitos que no fundo despoletam, ou esvaziam, a tensão.
Há um momento na História em que isto tenha começado a ser assim?
Acho que não. É uma História muito recente, não vejo raízes muito profundas para isto. O nosso pessimismo não tem álibi histórico. Estabeleceu-se um modo de vida caracterizado pela irresponsabilidade, mas é uma irresponsabilidade de quem manda. Tivemos uma oportunidade no 25 de Abril que deu... Deu nisto. Deu na irresponsabilidade. De quem? Quando se ouve falar de falta de produtividade nos media o que lá está subliminarmente dito é que é porque se trabalha pouco, porque há muitos feriados, porque há muitas baixas. Mas não se diz que nos países bem organizados os portugueses são considerados os melhores trabalhadores e não andam a chorar porque há poucos feriados. O problema está em cima. Quando quem manda não sabe mandar é o que dá. Irresponsabilidade é quando cai uma ponte e ninguém é responsável, quando faltam os deputados mas com umas justificações manhosas já se arruma tudo...
Não há uma explicação histórica para este pessimismo, este insucesso?
Não. É uma criação de hábitos contemporâneos. É do momento. Já vivi em Portugal, no 25 de Abril, momentos de grande esperança. No dia seguinte a um clube português ganhar, Portugal está cheio de força. Acho que não há continuidade de um pessimismo ao longo da História. Até porque a memória hoje é muito volátil, está sujeita a um bombardeamento intensíssimo. Uma semana de televisão varre toda a História.
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