27.4.06

A "modernização" da morte


SB, Evoramonte

«A Câmara Municipal de Lisboa resolveu fazer um leilão de jazigos do Cemitério do Alto de S. João e do Cemitério dos Prazeres e ainda de terrenos já "loteados" para novos jazigos no do Alto de S. João. A câmara chama aos cemitérios, muito apropriadamente, "urbanizações funerárias". Perto de 50 pessoas foram ao leilão e o metro quadrado chegou aos 8375 euros (num caso especialíssimo) e não desceu abaixo de 2500, mesmo na categoria inferior de "ossários-columbários". Nada mau, se considerarmos que o valor médio do metro quadrado em habitação para vivos, na Área Metropolitana de Lisboa, é de 1500 euros. Para seu gozo neste tempo de austeridade, a câmara encaixou mais de meio milhão, apesar de não ter vendido tudo. Este amor pelos fiéis defuntos não deixa de ser estranho em 2006. Parece que, em matéria de mortos, Portugal também não se conseguiu "modernizar". O jazigo é, por excelência, um monumento da sociedade burguesa. O estilo varia, como é sabido: neogótico, neoclássico, neo-romântico, "Raul Lino" e por aí fora.
Mas nunca varia a intenção: a de homenagear e perpetuar um homem venerável (ou mais raramente uma mulher) e uma família. A propriedade de um jazigo nos Prazeres, ou no Prado do Repouso do Porto, era um símbolo indispensável de ascensão social. Muita gente ambicionava a grande honra de um jazigo próprio e trabalhava a vida inteira para o vir a ter: com brasão, se possível, ou, pelo menos, com estatuária alegórica às virtudes que o haviam outrora ornamentado – a Fidelidade, a Caridade, a Justiça, a Fé. A vala comum para os muito pobres, sem nome ou distinção, e a campa rasa para a pequena burguesia conservavam na morte a hierarquia do mundo.
Ontem, o leilão da câmara interessou os jornais de Lisboa, porque o jazigo é um anacronismo. Ninguém seriamente acredita na imortalidade da alma ou na ressurreição da carne. A família, como coisa perene, desapareceu. O igualitarismo não percebe ou aceita o valor da superioridade que dura e se transmite. E toda a gente, obcecada pela saúde e a juventude do corpo, esconde e nega a morte. A morte, degradada em incidente hospitalar, para comodidade do próximo, é quase invisível. Os mortos, que atrapalham e deprimem, são expeditivamente despachados para o primeiro incinerador. A câmara criou um "núcleo museológico" nos Prazeres. Qualquer dia, nos Prazeres só há o "núcleo", não há o cemitério. Uma pena.»

Vasco Pulido Valente, Público, 25 de Fevereiro
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