4.2.06

Crónicas de Guerra

II- Os amigos da Alameda


[Alameda, 2005; Acrílico sobre tela feito por Diogo Freitas da Costa]

Eu vejo-os na Alameda como escolhos à deriva, encalhando em esplanadas de cafés onde são indesejados, por ocuparem tardes a fio as mesmas mesas, pedindo apenas
- um carioca, ó Brito...
com uma familiaridade que não se espelha no avaro comerciante, mais preocupado com a rentabilização do estabelecimento e pouco dado a actividades filantrópicas. No outro dia um deles, ao ver que me dirigia ao balcão, pediu-me que chamasse o Brito. O homem, que não devia estar nos seus dias – nunca está nos seus dias -, grunhiu rancorosamente
- esse também está-me sempre a chamar
enquanto lamentava o buraco em que se havia metido, naquela pasmaceira de servir cariocas a velhos decrépitos e aturar o chiqueiro das tias corcundas do bairro, apenas por uns trocos que dão para manter a casa aberta, pagar a pensão de divórcio do filho, os pequenos luxos da patroa
e serviu mais um galão
Eu comecei a evitar o estabelecimento do Brito porque via nos seus olhos hostis e modos rudes o desejo de fugir daquele velório. Do velório de que faço parte. Daqueles velhos que contemplo na Alameda, barrigudos, falhados, corcundas, coxos, vestindo fatos de há vinte anos, chorando sozinhos, olhando languidamente para as coxas duma jovem que passa, sempre de óculos escuros e sinistros como ex-agentes da PIDE, inúteis, abandonados, viúvos, doentes, cheios de medicamentos, sem ninguém que passeie com eles, jogando biscas intermináveis para passar o tempo a cinquenta tostões a vaza, agarrados aos relatos domingueiros de futebol, alimentando-se de sandes mistas e pastéis de nata, desvalidos, ignorantes, esticando os 70 contos de reforma, fracos, a cair, falando sobre as novelas da TV, perversos, assustadoramente simpáticos.
No outro dia, dois deles insistiram em sentar-se na minha mesa e desafiaram-me para o dominó. A meio da jogatana, vi de solsaio o Brito a observar-nos com insuportável ressentimento. Não o compreendi: afinal, não tínhamos feito mal a ninguém. Um dos meus amigos da Alameda até lhe perguntou:
- Ó Brito, não te queres sentar e jogar connosco?

[Escrito em 30/5/01]

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