24.1.06
"O contrário do que fotografamos"
"Atravessamos o estreito de Ancud, desembarcamos em Chiloé com o céu limpo de um azul inocente, e um sol frágil. É a luminosidade triste do breve Outono austral. Mesmo um viajante recém-convertido ao encanto do arquipélago intui a precariedade deste tempo solar e aconchegante. Não durará muito: logo voltarão as chuvas, as brumas, os dias cinzentos e ventosos que amaldiçoam aquelas latitudes durante a maior parte do ano.
Sempre foi miserável esta gente – o sustento arrancado a um mar traiçoeiro, riquíssimo mas caríssimo, que cobra peixes por pescadores, cardumes por naufrágios, vidas pescadas por mortes anunciadas. Esta gente sempre navegou na ténue linha que separa a sobrevivência do aniquilamento, a economia de subsistência da emigração desesperada. O bocadinho de história que lhes toca na história da Patagónia passou-se para lá dos Andes, longe desta paisagem ondulante, vital e encantada. Foram eles, os pescadores de Chiloé, que provocaram nos imensos latifúndios argentinos as grandes revoltas camponensas dos anos 20, recordadas por Chatwin e Sepúlveda nas suas obras sobre a Patagónia
(...) Castro é a cidadezinha mais importante do arquipélago. (...) As casas da ilha são, também elas, construídas e decoradas em madeira, servindo de cais de atraco a botes de madeira, soltando o fumo de fornos de lenha com que cozinham e aquecem um universo familiar contido entre quatro fachadas de madeira. Muitas fachadas estão cobertas com um motivo que recorda escamas de peixe, talvez uma forma de prestar vassalagem a tudo o que é líquido e viscoso neste átomo sólido sitiado pela imensidão do mar.
Penso na vida dura desta gente, uma vida reduzida à sua essencialidade mais espiritual: trabalho, família, igreja. Por uns momentos deixo-me levar pela fantasia de que aqui eu poderia ser feliz com esta côdea de expectativas, esta simplificação de desejos, este resíduo de actividades sociais. Se eu tivesse uma aptidão manual, uma qualificação técnica – se eu fosse um osteopata, um canalizador, um cozinheiro – poderia estabelecer-me aqui. Mas que fazer com as poucas coisas que sei fazer? A quem iria interessar as palavras que uso? Viria a escrever obituários para a agência funerária local? Deve haver uma agência funerária mesmo na mais recôndita ilha da Araucânia. Mas nestes espaços indeterminados as pessoas devem morrer tão pouco...
Stefano anda a tirar fotografias à socapa às expressões dos velhos pescadores e aos seus rostos carcomidos pela humidade salgada e pelo frio crónico de muitos anos. Tem uma nova máquina digital, com uma lente que parece um telescópio. Consegue apanhar os pormenores do rosto a grandes distâncias, como se apontasse ao alvo. Divertimo-nos com este jogo, parecemos quatro catraios com um brinquedo novo. Cada um dispara à vez, tentando capturar as expressões mais recônditas, os olhares mais significativos: tiro ao alvo à alma dos homens de Chiloé.
Instante Fotográfico
Stefano é o mais velho do grupo, eu sou o mais novo, mas na realidade temos todos a mesma idade mental. Temos a idade europeia da maturidade driblada, do matrimónio adiado, da paternidade esquivada. Somos esse «cocktail» ocidental, único no percurso da Humanidade, que mistura conhecimento e irresponsabilidade, cepticismo antigo e leveza amoral, vida fácil e experiência de vida.
Somos o contrário do que fotografamos. Pescadores pobres de rosto carcomido, suspensos entre o frio e a neblina, entre a igreja e o lar, entre a madeira e o mar. É a minha vez. Aponto cuidadosamente a um par de olhos, ponho a foco, espero que não se mexa. Disparo."
Gonçalo Cadilhe, Viajar na Patagónia (excertos de crónica publicada no Expresso de 16/04/2005)
Sempre foi miserável esta gente – o sustento arrancado a um mar traiçoeiro, riquíssimo mas caríssimo, que cobra peixes por pescadores, cardumes por naufrágios, vidas pescadas por mortes anunciadas. Esta gente sempre navegou na ténue linha que separa a sobrevivência do aniquilamento, a economia de subsistência da emigração desesperada. O bocadinho de história que lhes toca na história da Patagónia passou-se para lá dos Andes, longe desta paisagem ondulante, vital e encantada. Foram eles, os pescadores de Chiloé, que provocaram nos imensos latifúndios argentinos as grandes revoltas camponensas dos anos 20, recordadas por Chatwin e Sepúlveda nas suas obras sobre a Patagónia
(...) Castro é a cidadezinha mais importante do arquipélago. (...) As casas da ilha são, também elas, construídas e decoradas em madeira, servindo de cais de atraco a botes de madeira, soltando o fumo de fornos de lenha com que cozinham e aquecem um universo familiar contido entre quatro fachadas de madeira. Muitas fachadas estão cobertas com um motivo que recorda escamas de peixe, talvez uma forma de prestar vassalagem a tudo o que é líquido e viscoso neste átomo sólido sitiado pela imensidão do mar.
Penso na vida dura desta gente, uma vida reduzida à sua essencialidade mais espiritual: trabalho, família, igreja. Por uns momentos deixo-me levar pela fantasia de que aqui eu poderia ser feliz com esta côdea de expectativas, esta simplificação de desejos, este resíduo de actividades sociais. Se eu tivesse uma aptidão manual, uma qualificação técnica – se eu fosse um osteopata, um canalizador, um cozinheiro – poderia estabelecer-me aqui. Mas que fazer com as poucas coisas que sei fazer? A quem iria interessar as palavras que uso? Viria a escrever obituários para a agência funerária local? Deve haver uma agência funerária mesmo na mais recôndita ilha da Araucânia. Mas nestes espaços indeterminados as pessoas devem morrer tão pouco...
Stefano anda a tirar fotografias à socapa às expressões dos velhos pescadores e aos seus rostos carcomidos pela humidade salgada e pelo frio crónico de muitos anos. Tem uma nova máquina digital, com uma lente que parece um telescópio. Consegue apanhar os pormenores do rosto a grandes distâncias, como se apontasse ao alvo. Divertimo-nos com este jogo, parecemos quatro catraios com um brinquedo novo. Cada um dispara à vez, tentando capturar as expressões mais recônditas, os olhares mais significativos: tiro ao alvo à alma dos homens de Chiloé.
Instante Fotográfico
Stefano é o mais velho do grupo, eu sou o mais novo, mas na realidade temos todos a mesma idade mental. Temos a idade europeia da maturidade driblada, do matrimónio adiado, da paternidade esquivada. Somos esse «cocktail» ocidental, único no percurso da Humanidade, que mistura conhecimento e irresponsabilidade, cepticismo antigo e leveza amoral, vida fácil e experiência de vida.
Somos o contrário do que fotografamos. Pescadores pobres de rosto carcomido, suspensos entre o frio e a neblina, entre a igreja e o lar, entre a madeira e o mar. É a minha vez. Aponto cuidadosamente a um par de olhos, ponho a foco, espero que não se mexa. Disparo."
Gonçalo Cadilhe, Viajar na Patagónia (excertos de crónica publicada no Expresso de 16/04/2005)