21.12.05
Sobre o exótico
"Para compreendermos por que razões achou Flaubert exótico o Egipto, talvez seja útil examinarmos os seus sentimentos em relação à França. O que lhe parecia exótico no Egipto – isto é, novo e precioso ao mesmo tempo – era, sob múltiplos aspectos, o avesso do que o enfurecia na pátria. Tratava-se, para abreviar as coisas, das crenças e do comportamento da burguesia francesa que, desde a queda de Napoleão, se tornara a força dominante na sociedade, determinando o teor da imprensa, da política, das maneiras e da vida pública. Para Flaubert, a burguesia francesa era um repositório da hipocrisia, do pretensiosismo, da afectação, do racismo e da pomposidade mais extremos. ‘É estranho como as mais banais expressões [da burguesia] por vezes me assombram’, lamentava-se ele, com uma raiva contida. ‘Há gestos, tons de voz, que não suporto, observações imbecis que quase me causam vertigens…o burguês… é para mim qualquer coisa de imenso.(…)
Do dia que desembarcou em Alexandria em diante, Flaubert apercebeu-se do caos, tanto visual como auditivo, da vida egípcia, e sentiu que aquele era um meio que lhe convinha: barqueiros que gritavam, carregadores núbios que ofereciam os seus serviços, mercadores que regateavam, os sons que soltavam as galinhas sacrificadas, os zurzidos dos burros, o lamento dos camelos.(…)
A estética de Flaubert era uma estética da profusão. Gostava da cor da púrpura, do ouro e das turquesas, e por isso as cores da arquitectura egípcia fascinaram-no.(…)
Por que razão o caos e a riqueza tocam Flaubert? A verdade é que ele pensa que a vida é fundamentalmente caótica e que, exceptuada a arte, o desígnio de instauração de uma ordem implica uma negação censória e hipócrita da nossa condição. Expõe os seus sentimentos a esse respeito numa carta a Louise Colet, escrita durante uma viagem a Londres, em Setembro de 1851, passados apenas alguns meses após o seu regresso do Egipto: ‘Acabámos de voltar de um passeio pelo cemitério de Highgate. Que enorme degradação da arquitectura egípcia e etrusca, tudo aquilo! Tudo aquilo tão limpo e arranjado! Dir-se-ia que os seus mortos morreram calçando luvas brancas. Odeio os jardinzinhos à volta das sepulturas, com os canteiros bem cuidados e as suas flores desabrochadas. É um contraste que sempre me faz pensar no desfecho de um mau romance. Em matéria de cemitérios, prefiro os que estão em ruínas e ao abandono, invadidos de silvas e ervas bravas,e onde aparece a pastar alguma vaca, vinda de um campo vizinho. Temos de reconhecer que é preferível isso a um polícia fardado! A ordem é tão estúpida'
O exotismo dos burros que defecam
‘Ontem estivemos num café que é um dos melhores do Cairo’, escreveu Flaubert poucos meses depois de ter chegado à capital, ‘e enquanto lá estávamos havia um burro que defecava e um cavalheiro que urinava a um canto. Ninguém estranha estas coisas, ninguém diz nada.’ E, aos olhos de Flaubert, estava muito bem assim.
Um dos artigos fundamentais da sua filosofia sustenta que não somos criaturas simplesmente espirituais, mas seres que urinam e defecam, e que deveríamos integrar as consequências dessa ideia incontornável na nossa visão do mundo. ‘Não posso acreditar que o nosso corpo, composto de lodo e de excrementos e dotado de instintos mais baixos que os dos porcos ou dos chatos, contenha qualquer coisa de puro e de imaterial’, confessou ele uma vez a Ernest Chevalier. O que não significa a negação de uma dimensão superior. Acontecia apenas que a hipocrisia devota e o fariaísmo da época suscitavam em Flaubert o desejo de lembrar aos outros as impurezas humanas e de, se necessário, pôr-se ao lado dos que urinavam nas esplanadas dos cafés, ou do próprio marquês de Sade, paladino da sodomia, do incesto, da violação e do desvio de menores (‘Acabo de ler um artigo biográfico sobre Sade do [célebre crítico] Janin’, explicava Flaubert a Chevalier, ‘que me encheu de repulsa por Janin, que aproveita a ocasião para se alargar em defesa da moral, da filantropia e das virgens desfloradas…’)
Flaubert descobriu e saudou aprovadoramente a tendência que leva a cultura egípcia a aceitar a dualidade da vida: merda-espírito, vida-morte, pureza-sexualidade, loucura-lucidez. Nos restaurantes, as pessoas arrotavam à vontade. Ao cruzar-se com ele numa rua do Cairo, um rapazinho de seis ou sete anos exclamou à laia de brinde: ‘Desejo-lhe toda a prosperidade deste mundo e, sobretudo, uma grande verga!’"
Alain de Botton, A arte de viajar, págs.82-90
Comments:
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Claro, claro. Quando o mijo do burro no teu café do Cairo contaminar a tua tosta mista e tu fores parar ao hospital com e-colli no intestino grosso, a ver se não queres um bocadinho de ordem então oh DJ!
Tibas: Quem disse "a ordem é tão estúpida!" foi o Flaubert e não eu. Como sabes bem, o citador não é o citado. Eu, por mim, prefiro fumar a minha sheesha no café sem ter gajos a urinar por perto.
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