4.12.05
"Horizonte dos possíveis"
Já tiraste os teus quinze dias de férias este ano? já foste comprar uma gravata parecida com a do colega? já estás no quadro (que bom!)? o banco deu-te crédito para o apartamento no centro da cidade que os teus familiares e conhecidos acham apropriado para ti? qual é o spread do teu empréstimo? já casaste e foi bonito? consegues amealhar para o primeiro filho? dás-te bem com o teu patrão? o médio é-te suficiente? tens um carro último modelo? andas com um ar contentinho no centro comercial? tens TV Cabo e ligação à Internet? sentes pavor da miséria? gostas de ver televisão à noite para passar o tempo? nunca deixas o portátil em casa, pois pode sempre ser necessário e dá uma imagem de empreendedorismo e sofisticação? tens dinheiro investido numa conta poupança? quando viajas gostas de ficar em bons hotéis, pois não és nenhum pelintra? bebes um copo com os amigos de vez em quando? planeias mudar-te para a capital, onde terás mais possibilidades de ascender na carreira (ou a capital já não é suficiente para ti e vais emigrar)? não tens tempo para ler e gostas do que fazes? fazes caridade no natal (e vês, compungido, as reportagens sobre a consoada dos sem-abrigo? já não podes com o teu marido (mas é só uma fase) e sentes atracção pelo colega? envelheces tranquilamente e sem crises? aguentas porque "é a vida"? reprimes a libido para não subverter a ordem social (ou então és licencioso e frequentas as putas)? tens medo de ficar ainda mais abandonado e sozinho? andas a ler o livro da moda?
"Portugal tem uma sociedade normalizada. Significa isto que a vida individual e social do português encontra limites internos aquém dos que são a priori necessários para estabelecer uma vida em comum. Limites que passam despercebidos, mas impedem os indivíduos de experimentar ou criar alternativas em zonas essenciais da existência(…)
Digamos que o velho Portugal rural e pré-industrial fechado sobre si e sobre o seu império colonial pertencia à categoria das sociedades disciplinares com as suas instituições correspondentes (escola, prisão, fábrica, exército, Estado autoritário, etc.). A entrada de Portugal na Europa leva-o na direcção das sociedades de controlo (em que os mecanismos regulamentares decorrem directamente do funcionamento tecnológico dos serviços e as subjectividades correspondentes tornam-se, por assim dizer, dispositivos programados, como um elo da cadeia das novas tecnologias que controlam gestos, comportamentos, corpos, afectos).
Como consequência desta tensão, os hábitos de obediência e submissão que os portugueses trouxeram do autoritarismo salazarista mal começaram a desintegrar-se foram logo apanhados pelas tecnologias de controlo que surgiram. Que tipo de subjectividades está a resultar desta situação? Apesar de demasiado complexas, variadas e mutantes para serem descritas e classificadas rapidamente, um traço, no entanto, parece dominante: são subjectividades passivas que desposam a ilusão da actividade e da iniciativa. Ilusão, porque apenas se lhes oferece uma direcção única, a do controlo. É aliás, o que os discursos político, económico, social, cultural das instituições e dos media não cessam de nos dizer. Não há outras vias (políticas, económicas, sociais), não há outra maneira de viver, de educar, de instruir, de tratar, de organizar o lazer, de viajar, de se divertir, de amar. A abertura à Europa e ao mundo oferece-nos nesta sociedade globalizada a tecnociência ao serviço da globalização.(…)
O horizonte dos possíveis encolheu terrivelmente. Mas não se dá por isso, porque o próprio desejo de o alargar desapareceu. O sentido único manifesta-se nos mesmos tons e plano de pensar da classe política, da esquerda e da direita; no mesmo tipo de crítica artística ou literária que praticam indivíduos diferentes, na mesma linguagem do prazer, na mesma e monótona maneira de colocar problemas em todas as esferas da vida. O empobrecimento do horizonte dos possíveis explicaria assim a apatia, a anestesia da sociedade portuguesa.(…) Assim vão as subjectividades portuguesas. Não é este o maior obstáculo à democracia, à descoberta da vida livre e aberta?"
José Gil, Portugal, Hoje – O Medo de Existir, págs. 44-47
"Portugal tem uma sociedade normalizada. Significa isto que a vida individual e social do português encontra limites internos aquém dos que são a priori necessários para estabelecer uma vida em comum. Limites que passam despercebidos, mas impedem os indivíduos de experimentar ou criar alternativas em zonas essenciais da existência(…)
Digamos que o velho Portugal rural e pré-industrial fechado sobre si e sobre o seu império colonial pertencia à categoria das sociedades disciplinares com as suas instituições correspondentes (escola, prisão, fábrica, exército, Estado autoritário, etc.). A entrada de Portugal na Europa leva-o na direcção das sociedades de controlo (em que os mecanismos regulamentares decorrem directamente do funcionamento tecnológico dos serviços e as subjectividades correspondentes tornam-se, por assim dizer, dispositivos programados, como um elo da cadeia das novas tecnologias que controlam gestos, comportamentos, corpos, afectos).
Como consequência desta tensão, os hábitos de obediência e submissão que os portugueses trouxeram do autoritarismo salazarista mal começaram a desintegrar-se foram logo apanhados pelas tecnologias de controlo que surgiram. Que tipo de subjectividades está a resultar desta situação? Apesar de demasiado complexas, variadas e mutantes para serem descritas e classificadas rapidamente, um traço, no entanto, parece dominante: são subjectividades passivas que desposam a ilusão da actividade e da iniciativa. Ilusão, porque apenas se lhes oferece uma direcção única, a do controlo. É aliás, o que os discursos político, económico, social, cultural das instituições e dos media não cessam de nos dizer. Não há outras vias (políticas, económicas, sociais), não há outra maneira de viver, de educar, de instruir, de tratar, de organizar o lazer, de viajar, de se divertir, de amar. A abertura à Europa e ao mundo oferece-nos nesta sociedade globalizada a tecnociência ao serviço da globalização.(…)
O horizonte dos possíveis encolheu terrivelmente. Mas não se dá por isso, porque o próprio desejo de o alargar desapareceu. O sentido único manifesta-se nos mesmos tons e plano de pensar da classe política, da esquerda e da direita; no mesmo tipo de crítica artística ou literária que praticam indivíduos diferentes, na mesma linguagem do prazer, na mesma e monótona maneira de colocar problemas em todas as esferas da vida. O empobrecimento do horizonte dos possíveis explicaria assim a apatia, a anestesia da sociedade portuguesa.(…) Assim vão as subjectividades portuguesas. Não é este o maior obstáculo à democracia, à descoberta da vida livre e aberta?"
José Gil, Portugal, Hoje – O Medo de Existir, págs. 44-47
Comments:
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Também tu foste beber ao livro da moda, pelos vistos.
Nada a opor. O Estado regulador (primeiro da vida pública, depois da vida privada e dos comportamentos) e as regras sociais foram feitas para controlar o indivíduo. Como numa equipa em crise, onde a fúria e a desobediência do jogador deve reprimir-se a bem do colectivo. Desde pequenos (desde os contos infantis, desde o exemplo dos adultos também eles controlados) aprendemos que podemos ser felizes, desde que seja da maneira correcta. Felizmente há quem consiga. E felizmente, há quem encontre a felicidade caminhando, foragido, noutra direcção. A dele.
Ainda não sei qual deles sou eu.
Nada a opor. O Estado regulador (primeiro da vida pública, depois da vida privada e dos comportamentos) e as regras sociais foram feitas para controlar o indivíduo. Como numa equipa em crise, onde a fúria e a desobediência do jogador deve reprimir-se a bem do colectivo. Desde pequenos (desde os contos infantis, desde o exemplo dos adultos também eles controlados) aprendemos que podemos ser felizes, desde que seja da maneira correcta. Felizmente há quem consiga. E felizmente, há quem encontre a felicidade caminhando, foragido, noutra direcção. A dele.
Ainda não sei qual deles sou eu.
Viva!
Claro que fui beber ao livro da moda. Não deixa de ser irónico, mas quem critica pode ser o criticado, visto que estamos todos mais coisa menos coisa nessa "direcção única" de que o texto do Gil fala. Não há realmente (para lá da marginalidade) modos de vida alternativos, só "life style" (uma coisa bacoca e importada). E não conheço nenhum compatriota com mais de 30 que consiga fugir a essa direcção única, para a qual somos afunilados.
Claro que fui beber ao livro da moda. Não deixa de ser irónico, mas quem critica pode ser o criticado, visto que estamos todos mais coisa menos coisa nessa "direcção única" de que o texto do Gil fala. Não há realmente (para lá da marginalidade) modos de vida alternativos, só "life style" (uma coisa bacoca e importada). E não conheço nenhum compatriota com mais de 30 que consiga fugir a essa direcção única, para a qual somos afunilados.
é um bocado sobre todos nós, vostra. É sobre a dificuldade em arranjar alternativas em conjunto, enquanto sociedade.
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