4.10.05
Sobre as autárquicas: o "rouba mas faz"
"Tenho sempre uma certa relutância emescrever sobre os "pequenos", ou seja,no caso, sobre Fátima Felgueiras, como antes dela tive em escrever sobre Isaltino ou sobre o major Loureiro, embora admita que nem Isaltino,nem Loureiro pertencem rigorosamente à raça. Essa relutância vem de uma razão prosaica: não ando a dormir e, em 30 anos, já pude perceber que os maiores "beneficiários" do regime não foram com certeza as criaturas um pouco patéticas que acabaram na televisão e nos jornais. O tráfego de influência, a fraude a sério, o negócio verdadeiramente corrupto, ficam por força e tradição entre indivíduos muito respeitáveis, que ninguém conhece e que nunca por nunca fazem falar de si. Ainda por cima, o grande crime, bem guardado por um exército de advogados, consegue conservar uma ficção de legalidade: uma assinatura aqui, um despacho ali, uma conversa acolá — e as coisas correm docemente. Sabendo isto, despejar, tremendo, a indignação da praxe sobre a real insignificância de Isaltino, de Loureiro e de Fátima e opinar, com melancolia e pompa, sobre a famosa "moralidade da vida política" dá a impressão desagradável de bater no bode expiatório. Não porque eles mereçam qualquer condescendência. Mas porque o alarido esconde a enorme vigarice instituída, que os costumes permitem, o Estado consente e a televisão e os jornais largamente ignoram. Se alguém se aplicasse a descobrir o que valem hoje e o que valiam há vinte ou trinta anos certas personagens do regime, não perderia um décimo de segundo com a putativa delinquência de Fátima Felgueiras. Queimar a bruxa (mesmo a bruxa má) não me parece, em princípio, um exercício produtivo e saudável. Claro que por detrás do episódio, como por detrás da história de Isaltino e de Loureiro, há uma realidade inquietante: o cinismo do eleitorado. Apoiando este extraordinário grupo, o eleitorado, ou pelo menos parte dele, está a comunicar à justiça e aos partidos: "Todos roubam. Toda a política é um roubo organizado, que os senhores protegem. Escusam de nos dizer que eles são piores — não são. São até melhores porque nos trataram bem. Se agora resolveram limpar a casa, comecem por outro lado." Se os três ganharem, ou se um deles ganhar, não importa qual, é o regime que perde. Não vale a pena inventar desculpas. Quando o voto rejeita expressamente a decência comum, não se pára mais."
Vasco Pulido Valente, Público, 24 Setembro
Vasco Pulido Valente, Público, 24 Setembro