26.9.05

há um Verão que morre em mim

No jardim multiplicam-se os sinais de Outono. Os dias minguam. O estiolar da Natureza pressagia os rigores que se avizinham. Sou tomado por uma profunda melancolia e tento, em vão, refugiar-me na dimensão do livro. O sol incide no banco onde me sento. O sol ainda queima. Folhas castanhas soltam-se morosamente dos ramos de carvalhos centenários. As sombras permanecem generosas e necessárias. Por quanto tempo mais? Há um Verão que morre em mim...

(5/10/02)

24.9.05

Sobre o bom gosto

"When I want to cheer myself up, I head for Ferdousi Street, where Mr. Ferdousi sells Persian carpets. Mr. Ferdousi, who has passed all his life in the familiar intercourse of art and beauty, looks upon the surrouding reality as if it were a B-film in a cheap, unswept cinema. I’ts all a question of taste, he tells me: The most important thing, sir, is to have taste. The world would look far different if a few more people had a drop more taste. In all horrors (for he does call them horrors), like lying, treachery, theft, and informing, he distinguishes a common denominator – such things are done with people with no taste. He believes that the nation will survive everything and that beauty is indestructible. You must remember, he tells me as he unfolds another carpet (he knows I’m not going to buy it, but he would like me to enjoy the sight of it), that what has made it possible for the Persians to remain themselves over two and a half millennia, what has made it possible for us to remain ourselves in spite of so many wars, invasions, and occupations, is our spiritual, not our material, strenght – our poetry, and not our technology; our religion, and not our factories. What have we given the world? We have given poetry, the miniature, and carpets. As you can see, these are all useless things from the productive viewpoint. But it is through such things that we have expressed our true selves. We have given the world this miraculous, unique uselessness. What we have given the world has not made life any easier, only adorned it – if such a distinction makes any sense. To us a carpet, for example, is a vital necessity. You spread a carpet on a wretched, parched desert, lie down on it, and fell you are lying in a green meadow. Yes, our carpets remind us of meadows in flower. You see, before you flowers, you see a garden, a pool, a fountain. Peacocks are sauntering among the shrubs. And carpets are things that last – a good carpet will retain its color for centuries. In this way, living in a bare, monotonous desert, you seem to be living in an eternal garden from which neither colour nor freshness ever fades. Then you can continue imagining the fragrance of the garden, you can listen to the murmur of the stream and the song of the birds. And then you feel whole, you feel eminent, you are near paradise, you are a poet."

Ryszard Kapuscinski, Shah of Shahs, publicado em 1985

22.9.05


"The Birds" (1963), de Alfred Hichcock, com Rod Taylor e 'Tippi' Hedren. Recomendo vivamente a colecção do Público (sai às sextas). O filme (neste caso, uma das obras-primas do realizador britânico) vem acompanhado por um livro com fotos e textos interessantes. Para além disso, os extras são preciosos. O excelente "making of" permite ter uma ideia de como eram conseguidos os efeitos especiais nos anos 60, sem ajuda de computadores.

19.9.05

Moínhos em Kinderdijk


(Foto tirada em Março de 2005)

14.9.05

As Grandes Insubmissões

As grandes insubmissões sempre foram para mim as pequenas. Na minha vida, lembro duas.
Começava um ano lectivo. Andaria no segundo ano do liceu. Era a época da feira da piedade. Cheguei de férias na minha terra e vi o vítor a andar de carrocel. Esperava que a volta acabasse para o abraçar. Fui esperando, ele nunca mais descia. Uma volta, mais outra, outra ainda. Fui contando: vinte. O vítor tinha vinte escudos. Eu já o respeitava, porque era muito alto. Passei a respeitá-lo mais. O vítor era capaz de gastar vinte escudos no carrocel.
Outra grande insubmissão foi a do maurício, também nos primeiros anos do liceu.
Um dia o maurício faltou à aula das nove. Até aí, nada de particular. Saímos para o pátio e o maurício estava no campo de basket, perfeitamente equipado, sozinho, a lançar a bola ao cesto.
- Ò maurício, faltaste à aula das nove.
E o maurício, sem responder, imperturbável, continuava a lançar a bola ao cesto.
Tocou para a aula das dez.
- Ò maurício, não vens à aula?
E o maurício não respondia. Continuava, imperturbável, a lançar a bola ao cesto.
Faltou à aula das dez, faltou toda a manhã. Nos intervalos saíamos e logo ouvíamos a bola contra a tabela. O maurício, sozinho, continuava a lançar a bola ao cesto.
Só se foi vestir quando tocou para a saída da última aula dessa manhã. Esperámos todos por ele. Não lhe perguntámos nada. E seguimo-lo cheios de admiração. O maurício, apesar dos professores, apesar dos contínuos, apesar da campainha, faltara a todas as aulas.
Toda a manhã jogara basket. Sozinho. Contra professores, contra contínuos, contra a campainha.

Ruy Belo; Homem de Palavra[s]

7.9.05

Lisboa depois da Holanda (18/7) – Regressar a Portugal, e principalmente a Lisboa, depois da experiência da Índia e dos meses na Holanda, é estranho. Estar fora foi uma felicidade. Na Índia vi dimensão e exotismo, em Veneza elegância e fausto, na Holanda organização e qualidade de vida. Aqui vejo atraso e aperto. O anúncio no Metro com um tipo engravatado submerso em água: "Afogado em dívidas?" É, claro, publicidade de uma empresa de crédito "a prestações mais suaves". Ando de café em café a fazer tempo enquanto a B. trata dos seus assuntos. Não tenho casa. Ontem passei à porta da nossa antiga casa. Olhei para a varanda e lá estava o velho e ferrugento escadote a um canto, onde o tinha deixado. Estão tapetes estendidos na grade da varanda e esses não são meus. A casa já é de outros e não quereria voltar lá. Lugar comum verdadeiro: não se volta ao sítio onde se foi feliz.

Voltando a Utrecht – Faz pouco mais de um mês desde que saí da Holanda e já estou completamente imbuído na realidade lusa. O contraste é tal que Utrecht parece estar bem mais para trás. A C. e o M., a N. e o A., as longas passeatas de bicicleta e os cafés acolhedores da cidade, tudo isso me parece estar numa outra dimensão. E está.
É curioso que nos últimos tempos da Holanda sentia o contrário. Era Portugal que surgia como uma realidade distante e esbatida. E eu sentia-me bem com isso. Não tinha grandes saudades do que sabia vir encontrar. Havia uma nostalgia dos amigos, da comida, do clima, mas não do país. Não da sociedade portuguesa, ignorante e medíocre. Sentia-me protegido disso, longe. Sabia que estava num jardim ,um sítio melhor, mais justo e civilizado.
Em todo o caso (gosto desta expressão, que o D. costuma usar), comecei a perder o contacto com o país. Muito paulatinamente, mas de forma visível. As notícias portuguesas foram deixando de ser urgentes. Ao deixar de ver a televisão nacional, deixei de ter acesso às caras de que se falava nos jornais. Metade dos políticos do novo Governo eram desconhecidos para mim. Nunca os tinha ouvido ou visto. E ainda bem, não tinha perdido nada.
O que aconteceria se ficasse mais tempo? O processo progrediria inapelavelmente. Veja-se os exemplos da C. e da N., que já têm uma ideia muito vaga do país. Quando muito, vêm cá nas férias passar alguns dias. Falam de Portugal sem qualquer nostalgia. Estão noutra e estão bem. Acho que estão conscientes daquilo de que se safaram.
Eu acho interessante essa ideia de distância em relação à "pátria". Acho que um tipo deveria viver muitas vidas ao longo da sua vida. E vivê-las em sítios diferentes, com pessoas diferentes. Estes meses holandeses foram essencialmente isso: uma outra vida. Venham mais!

2.9.05

Um poema e uma canção para Nova Orleães, a cidade onde o Jazz começou:

jazz

Noite após noite, nas caves fumarentas das cidades
o som foi-se aperfeiçoando
Os músicos improvisaram uma nova linguagem
para subverter o fascismo e a eficiência
Chama-se jazz
Jazz como jasmim
o perfume das putas de New Orleans

(5/03)

I Wish I Was In New Orleans(In the Ninth Ward)

Well, I wish I was in New Orleans
I can see it in my dreams
Arm in arm down Burgundy
A bottle and my friends and me

Hoist up a few tall cool ones
Play some pool and listen
To that tenor saxophone
Calling me home

And I can hear the band begin
"When the Saints Go Marching In"
And by the whiskers on my chin
New Orleans, I'll be there

I'll drink you under the table
Be a red nose, go for walks
The old haunts, what I wants
Is red beans and rice

And wear the dress I like so well
Meet me at the old saloon
Make sure that there's a Dixie moon
New Orleans, I'll be there

And deal the cards, roll the dice
If it ain't that old Chuck E. Weiss
And Clayborn Avenue, me and you
Sam Jones and all

And I wish I was in New Orleans
Cause I can see it in my dreams
Arm in arm down Burgundy
A bottle and my friends and me
New Orleans, I'll be there

Written by: Tom Waits
Published by: Fifth Floor Music (ASCAP), © 1976
Official release: Small Change, Elektra/ Asylum Records, 1976

1.9.05

buraco

Arranje-me um buraco
ficar-lhe-ia eternamente grato
se me arranjasse um buraco
pode ser daqueles pequenos
dois metros quadrados, mais não
dispenso a janela, o ponto de fuga
basta uma arrecadação
cave ou sub-cave
secretária plastificada
monitor sem filtro
e um banquinho de cozinha
Arranje-me um buraco
ficar-lhe-ia eternamente grato
ocupo pouco espaço
sou pessoa de bom trato
venho a recibo verde
é barato, nem precisa de contrato
e, prometo
dou conta do mandato
sem cobrar extraordinárias

(15/3/04)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?