12.5.05
Crónicas de Guerra
I - Tenho a reforma toda para ler

Este homem irrita-me. Sinto-me um analfabeto. Não percebo onde quer chegar, as suas crónicas não têm história, falta-lhes o princípio, o meio e o fim. E, no entanto, continuo a lê-lo...Chego ao fim do primeiro parágrafo e já estou a pontos de desistir..."Apetece-me pegar no boneco ao colo mas já não tenho idade para estas coisas. São oito horas e a clarabóia mais nítida que a sala. Escrevo praticamente às cegas, encavalitando as linhas no papel. Nem existo, quase. Existe o cabelo cor de laranja, a tulipa de borracha, objectos que se vão amortalhando no silêncio."
Mas de que raio está ele a falar? O meu filho, que é doutor licenciado, disse-me que ele é o melhor escritor português vivo, que merecia o Nobel e essas coisas. Todas as semanas, ao folhear a revista, deparo-me com o seu rosto envelhecido, o escasso cabelo grisalho, um olhar imperscrutável. Por baixo, um título a letras gordas, quase sempre desolador ou sentimentalista. Hoje é "OLHOS CHEIOS DE INFÂNCIA" e eu pergunto-me porque haveria de ler um texto com tal título. Só se for por ter a reforma toda para ler, ou por não estar ninguém em casa – nem sequer o gato - e detestar ambientes de café. Quando vier do trabalho, lá para as cinco, a minha mulher traz-me o pão e os cigarros para o lanche, depois preparará o jantar e à noite vemos televisão.
Hoje não me apetece vestir. Fico a olhar para a foto tipo passe deste homem e faz-me lembrar o meu filho que vejo de mês a mês, quando vem à terra. "É o melhor escritor português vivo", disse-me, categórico. E quando lhe perguntei porquê, não percebi a resposta. Está diferente, agora dá-se ares de intelectual. Tem a mania e eu tenho a reforma toda para ler e não gosto de lamechices.
"Pensando melhor, ninguém tem olhos de infância por trás da pintura, sou eu que sou parvo. Ninguém tem olhos de nada. Existem olhos apenas, e acabou-se."
Não sei porque não viro a página, porque continuo a ler. Irrita-me. Não percebo. Está mal escrito, faltam-lhe vírgulas e pontos finais. Mais valia ligar a televisão, ver o filme que ontem gravei às escondidas. E, no entanto...
"Houve crescidos. Ao chegar a minha altura de crescer dei-me conta que eram umas pobres criaturas indecisas. O chofer de táxi cospe com competência, interessado nas nádegas do travesti, hesita, decide-se, volta a hesitar: uma pobre criatura indecisa."
(2001)

Este homem irrita-me. Sinto-me um analfabeto. Não percebo onde quer chegar, as suas crónicas não têm história, falta-lhes o princípio, o meio e o fim. E, no entanto, continuo a lê-lo...Chego ao fim do primeiro parágrafo e já estou a pontos de desistir..."Apetece-me pegar no boneco ao colo mas já não tenho idade para estas coisas. São oito horas e a clarabóia mais nítida que a sala. Escrevo praticamente às cegas, encavalitando as linhas no papel. Nem existo, quase. Existe o cabelo cor de laranja, a tulipa de borracha, objectos que se vão amortalhando no silêncio."
Mas de que raio está ele a falar? O meu filho, que é doutor licenciado, disse-me que ele é o melhor escritor português vivo, que merecia o Nobel e essas coisas. Todas as semanas, ao folhear a revista, deparo-me com o seu rosto envelhecido, o escasso cabelo grisalho, um olhar imperscrutável. Por baixo, um título a letras gordas, quase sempre desolador ou sentimentalista. Hoje é "OLHOS CHEIOS DE INFÂNCIA" e eu pergunto-me porque haveria de ler um texto com tal título. Só se for por ter a reforma toda para ler, ou por não estar ninguém em casa – nem sequer o gato - e detestar ambientes de café. Quando vier do trabalho, lá para as cinco, a minha mulher traz-me o pão e os cigarros para o lanche, depois preparará o jantar e à noite vemos televisão.
Hoje não me apetece vestir. Fico a olhar para a foto tipo passe deste homem e faz-me lembrar o meu filho que vejo de mês a mês, quando vem à terra. "É o melhor escritor português vivo", disse-me, categórico. E quando lhe perguntei porquê, não percebi a resposta. Está diferente, agora dá-se ares de intelectual. Tem a mania e eu tenho a reforma toda para ler e não gosto de lamechices.
"Pensando melhor, ninguém tem olhos de infância por trás da pintura, sou eu que sou parvo. Ninguém tem olhos de nada. Existem olhos apenas, e acabou-se."
Não sei porque não viro a página, porque continuo a ler. Irrita-me. Não percebo. Está mal escrito, faltam-lhe vírgulas e pontos finais. Mais valia ligar a televisão, ver o filme que ontem gravei às escondidas. E, no entanto...
"Houve crescidos. Ao chegar a minha altura de crescer dei-me conta que eram umas pobres criaturas indecisas. O chofer de táxi cospe com competência, interessado nas nádegas do travesti, hesita, decide-se, volta a hesitar: uma pobre criatura indecisa."
(2001)

Comments:
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Este homem não me irrita, intriga-me. Também não percebo, às vezes, para onde é que ele vai. Mas gosto que me leve, porra. E isso já é bom, não é? Não sei se isto te descansa, mas pelo menos fica-te com esta: é um dos melhores cronistas que por aí anda. Melhor que as Bombas Inteligentes e os jvms deste planeta média.
Olá Joana! Acho que tens razão: o Lobo Antunes é um grande cronista e escritor. Mesmo que, por vezes, não saibamos para onde nos leva, ou fiquemos perdidos no caminho.
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