4.4.05

Said Ali, o sobrevivente

Próximo da mesquita de Sayyidna al-Hussein, o templo mais sagrado do Cairo, sentámo-nos ao lado de um menino sapateiro com ar reguila que se começou a rir para nós ao ouvir-nos falar:
- Bla, bla, bla, bla, bla – imitava em tom brincalhão.
Said Ali dizia ter 15 anos, mas parecia ter menos. Era ainda imberbe, mas já um sobrevivente. Como todos os engraxadores, o primeiro pormenor que retinha de uma pessoa era o aspecto dos sapatos. Se estivessem minimamente sujos, logo oferecia os seus préstimos. Mostrava-nos, vaidoso, a sua técnica de engraxar. Tinha um sorriso de criança e um olhar que transmitia uma alegria contagiante. Um jovem a quem ele engraxava os sapatos falava bem inglês. Regressara há pouco tempo de Londres, onde trabalhava num restaurante com portugueses e brasileiros. Disse que estava de férias no Cairo, a sua cidade-natal, e que planeava encontrar emprego e ficar por lá. Simpaticamente, serviu de tradutor na conversa que entabulámos com Said Ali. Residente nos subúrbios do Cairo, o menino era um de muitos irmãos e a família não tinha posses para os sustentar. Por isso, desde há muito que fazia aquele biscate à noite para pagar os seus estudos na madrassa (escola). Said Ali mostrou-nos o seu cartão de estudante com orgulho. Falava a sorrir e perguntou os nossos nomes, tentando repeti-los na perfeição. Depois apontou para ele e pronunciou lentamente "Said Ali", convidando-nos a fazer o mesmo exercício.
Sempre atento a algum possível cliente, Ali mostrou-nos desenhos que ia fazendo na caixa de cartão onde guardava as escovas e graxas. Eram desenhos bem feitos de palmeiras e rostos. Decidimos dar-lhe alguns blocos de papel e uma caneta. Ele olhou para aquilo com interesse e preparava-se para nos devolver, não percebendo que era uma oferta. Face à nossa insistência, guardou as prendas no interior da sua encardida bata cinzenta. Continuava a sorrir quando voltou a olhar para os nossos pés. Estávamos todos a usar sapatilhas.
- No luck, no luck – repetiu, utilizando as poucas palavras inglesas que conhecia.
Despedimo-nos com um grande sorriso daquele miúdo tão peculiar. Mas a noite ainda traria mais surpresas agradáveis. Pouco depois descobrimos o Fishawi’s, que se localiza numa viela próxima da mesquita de al-Hussein e é provavelmente o café mais antigo do Cairo. O mítico local é de uma beleza exótica. Das paredes pendem enormes e vetustos espelhos e o movimento à volta das mesas é frenético, dado que o café é uma espécie de continuação da rua e muitos transeuntes o usam como local de passagem. Quem está sentado, a beber chá ou a fumar "sheesha" (uma espécie de cachimbo de água) não tem pressa. Pedimos "sheesha" e provámos um tabaco suave e extremamente aromático, com sabor a maçã. Ao contrário do nosso café, que estimula a rapidez, o ritual da "sheesha" é lento e propício à convivialidade.

(Crónica publicada em 2004)
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