27.10.06



"Não sei por que querem me ver [em Portugal]. Às vezes, tenho impressão que me querem ver antes que acabe"
Chico Buarque, Lisboa, 27 de Outubro de 2006

E é isso mesmo. Quero ver de primeira fila o milagre da poesia cantada que Chico, como poucos outros, conseguiu realizar. Quero ver e quero poder contar aos que vierem aquilo que vi.

Destaques Doclisboa 2006

Ainda a procissão vai mais ou menos a meio e já vi dois filmes muito bons, ambos produzidos em Portugal (um sinal de que há uma nova geração de realizadores baseados em Portugal - não necessariamente portugueses, como no caso de Reeh - que filmam com qualidade). O documentário tem tudo para singrar por aqui, dado que é um género económico. E, como se sabe, Portugal é um país muito económico.
Vamos aos destaques da primeira metade do evento (as sinopses são escritas pela organização do festival):


Pátria Incerta
de Inês Gonçalves e Vasco Pimentel | 52' Portugal 2006

«'Pátria Incerta' olha para um aspecto da colonização de que nunca ninguém fala: o génio que o povo colonizado revela ao produzir uma síntese civilizacional própria. Durante 450 anos, Goa fez parte do império colonial português, de costas voltadas para o resto da Índia. Nos primeiros 60 anos da ocupação, metade da população (intensamente culta, intensamente estruturada, intensamente hindu) foi forçada a converter-se à religião católica. Tal como o clima húmido de Goa dificulta o sarar das feridas, também o passado parece não conseguir cicatrizar. A memória da cultura portuguesa sobrevive em Goa e revela-se à vitalidade da cultura hindu, nunca enfraquecida, presente por toda a parte - até nos católicos goeses, descendentes de hindus convertidos.»



À Espera da Europa
de Christine Reeh | 58' Portugal 2006
«A jovem Vânia que protagoniza 'À Espera da Europa' veio da Bulgária para viver em Portugal à procura da sua independência e de realizar o sonho de uma vida melhor. Passa por medos e esperanças, enquanto tenta encontrar respostas para as grandes decisões da vida. Quando começa a viver em Espanha apercebe-se de repente do seu isolamento e que se encontra num ciclo típico de dependência. Este filme é sobre a emigração de uma perspectiva feminina. É sobre crescer e adiar a vida ... enquanto se espera que um dia as utopias da Europa se realizem.»

21.10.06


Vinicius, Quem pagará o enterro e as flores se eu morrer de amores?
Documentário com excertos ficcionados realizado por Miguel Faria Jr., ontem presente em Lisboa para a antestreia, no âmbito do festival de cinema brasileiro que decorre este fim-se-ssmana no cinema São Jorge.


Um documento que permite perceber o quanto devemos a este poeta boémio, alcoólico e mulherengo. Sem Vinicius não teria havido Tom ou - principalmente - Chico, pelo menos tal como os conhecemos.

17.10.06

"Português em vias de extinção"


PB, Colégio em Margão, Goa

O Constantino Xavier, jornalista goês sediado em Nova Deli, tem desenvolvido um trabalho quase sem paralelo na tentativa estabelecer um ponto de ligação entre as culturas portuguesa e indiana. Correspondente do Expresso em Deli (cada vez mais, uma capital mundial de grande importância geoestratégica), autor do excelente blog A Vida em Deli e gestor do site Supergoa, teve a simpatia de publicar a reportagem que fiz em Goa sobre o (mau) estado da cultura portuguesa, particularmente no que diz respeito ao ensino língua. Intitulada "Português em vias de extinção" e originalmente publicada no Independente, em Maio de 2005, é agora republicada na sua versão integral, bem mais desenvolvida.

11.10.06

Kapuscinski a Nobel!

O próximo Prémio Nobel da literatura é anunciado nos próximos dias. Um dos candidatos crónicos é Ryszard Kapuscinsk, o melhor repórter que já li. Por muito relativo que um prémio (mesmo este) possa ser, sempre serviria para divulgar a obra deste mestre polaco, da qual aqui deixo um delicioso excerto (entre milhares que poderia escolher):

"Lentamente, de má vontade, os sentinelas cedem. Discutem o assunto, afastam-se para um lado, conferenciam uns com os outros e, por vezes, eclode uma desavença entre eles. Podem decidir mandar uma mensagem ao comandante, que foi de carro à cidade, ou partiu a caminho de alguma vida. Então, temos de esperar. Esperar, esperar é o que passamos a vida a fazer aqui. Mas isto tem o seu lado positivo, porque estas esperas conduzem a mútua familiaridade e maior intimidade. Já nos tornámos parte integrante da sociedade dos postos de controlo. Quando há tempo e interesse, podemos falar-lhes da Polónia. Temos mar e montanhas. Temos florestas, mas as árvores são diferentes: não há um só embondeiro na Polónia. Lá também não se cultiva café. É um país mais pequeno do que Angola, mas temos uma população maior. Falamos polaco. Os ovimbundis falam a sua língua, os txoqués falam a deles e nós falamos a nossa. Não comemos mandioca; as pessoas na Polónia não sabem o que é a mandioca. Toda a gente tem sapatos. Só se pode andar descalço no Verão. No Inverno, uma pessoa descalça podia ficar com os pés queimados pela neve e morrer. Morrer por andar descalço? Ah, Ah! É longe, a Polónia? É, mas de avião é perto. E por mar demora um mês. Um mês? Então não é longe. Temos armas? Temos armas, artilharia e tanques. Temos gado, tal como aqui. Vacas e cabras, não tantas cabras como aqui. E nunca viram um cavalo? Bem, um destes dias hão-de ver um cavalo. Temos imensos cavalos.
O tempo passa em amena cavaqueira, exactamente aquilo que querem as sentinelas. Porque, agora, as pessoas raramente se atrevem a viajar. As estradas estão desertas e podem-se andar dias e dias sem ver uma cara nova. E, no entanto, não nos podemos queixar de tédio. A vida hoje centra-se à volta dos postos de controlo, tal como na Idade Média se centrava à volta da igreja. As vendedeiras do mercado local põem as suas mercadorias sobre panos: bananas grandes, ovos de galinha pequenos como nozes, piri-piri vermelho, milho seco, feijão preto e romãs ácidas. Os donos de tendas de vestuário vendem as roupas mais baratas, lenços garridos, e também pentes de madeira, estrelas de plástico, espelhos de bolso com a fotografia de artistas conhecidas na parte de trás, elefantes de borracha e pífaros com teclas que funcionam. As crianças que não estejam de serviço brincam nos campos vizinhos, vestidas com camisas tecidas em casa. Podem-se encontrar mulheres da vila com cântaros de barro à cabeça, à procura de água, vindas não se sabe de onde e não se sabe para onde.
O posto de controlo, quando constituído por pessoas amigáveis, é um lugar de paragem acolhedor. Aqui, podemos beber água e, por vezes, comprar dois litros de gasolina. Podemos obter carne assada. Se se faz tarde, deixam-nos ficar a dormir. Ocasionalmente, têm informação sobre quem controla a parte seguinte da estrada."

Ryszard Kapuscinski, Mais um dia de vida – Angola 1975; Tradução de Ana Saldanha, pág.40

2.10.06

"Gostava de almoçar no quarto, fumando depois o primeiro cigarro, antes de fazer a barba. Ema mostrou-se, de repente, incompatível com esse hábito, falou em ter quarto à parte.
- É mais saudável e não tenho que acordar quando chegas tarde.
Foi um golpe para o marido. Amava a intimidade da mulher, a carne nua, a carícia que o sono torna pueril; amava o todo desejável que completa a vida conjugal, a conversa de cama, a felicidade de berçário que se respira num quarto de casal nas horas em que reina uma ordem espiritual de paz profunda, ininteligível, em que todas as humilhações ficam ofuscadas, em que o orgulho negro das aventuras desaparece. São apenas dois seres inocentes, a alma é o risco proposto pelo corpo, mas um risco suspenso e reduzido apenas a uma frida secreta, adormecida."
Agustina Bessa Luís, Vale Abraão


Eric Fischl

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