22.6.06

extinguem-se lenta muito lentamente



Há quem possa sonhar
e quem não tenha sonhado
Há por aí "velhinhos" que, por não terem ousado
se agrupam à roda de mesas de jardim
e, jogando, matam o tempo que os dilacera
fogem das mulheres reumáticas, um copo de três pró caminho
e lerpam cada vaza a um tostão
(não dá p’ra mais a pensão)
Enchem-se de brio na denúncia dos batoteiros
"Assim não! Arreio jogo e não pago a despesa!"
não toleram quem não leve a sério a jogatina
"Mas p’ra que é que vai à espada?! P’ra que é que vai à espada?!"
ficam tristes quando chove
e têm que se recolher nos beirais
Extinguem-se lenta muito lentamente
À noite, com as copas na mão
regressam às mães
aos chinelos e à televisão
jantam os restos do almoço
talvez ainda se masturbem
e rezam para que amanhã nasça bonito

(Março de 2004)

13.6.06

continuamente a semear desejos em nós

"Mas eu quero ver o primeiro homem que não deseja coisa nenhuma! Nunca fazemos o treino para isso e, pelo contrário, todo o mundo está organizado - por exemplo através da televisão e da publicidade - para desejar alguma coisa mesmo quando não se deseja. O homem, ao levantar-se de manhã pode não desejar nada, mas logo a primeira notícia que tem pela rádio é que se inventou um novo automóvel movido a água e no qual não precisa de accionar qualquer alavanca – ele diz pelo telefone ao automóvel para onde quer ir e pronto; então o desgraçado, no caso de não ter dinheiro, corre logo à procura de amigos que lho emprestem para comprar o novo automóvel. Quer dizer, o mundo, na fase actual, está, continuamente a semear desejos em nós, sendo esse um dos pontos mais importantes do mundo – como é que podemos chegar a uma economia que não semeie em nós o desejo, mas sim a quietação em vez da inquietação, prestando nós, no entanto, toda a homenagem e todo o agradecimento aos tempos históricos passados e em que foi pelo desejo das pessoas que se conseguiu, na realidade, um parque industrial, um parque técnico como aquele que temos hoje à disposição e que – eu continuo a acreditar – bem utilizado pode contribuir para a libertação do homem."
Agostinho da Silva, Vida Conversável, págs. 63, 64

"Portugal, na sua primeira época, naquela em que em geral podemos chamar a primeira dinastia e que eu limito até... Eu vou até ao Dom Dinis, não até Dom Afonso IV. Vamos então ver quais eram as características fundamentais desse Portugal. Parece-me a mim que economicamente se encaminhava para ser um país comunitário, não comunista, para não confundirmos com terminologias ou ideologias mais modernas, mas um Portugal comunitário, exactamente como do lado de lá, naquilo que em Espanha, no tempo do imperador Carlos V, se chamava o grupo ou ideia dos comuneros. Comuneros do lado da Espanha, comunitaristas do lado de Portugal - que era? Um grupo de gente que achava que o fundamental do país era a associação económica de homens votados a uma tarefa comum para produzir alguma coisa que bastasse para a nação e para exportação, sem concorrência entre eles, sem o fito do lucro acima de tudo, mas uma associação, uma cooperação de gente, de modo a produzir o necessário sem quebrar a regra da fraternidade. É o comunitarismo a que se tem chamado agro-pastoril, e que houve também entre os pescadores - até muito perto de nós o grupo de pescadores de um barco chamava-se companha, e quando havia uma captura dividiam entre si o produto da pesca com uma parte, naturalmente, para o fundo de previdência."
Agostinho da Silva, Vida Conversável, pág.80

4.6.06

"De modo que, de facto, temos de libertar as nossas várias personalidades hoje completamente reprimidas… Umas das coisas que nos reprime a personalidade é o facto de termos de exercer no mundo uma profissão, de termos de ter um trabalho. Então por mais que cultivemos nossas vocações, na realidade pomos muita coisa de parte, porque a complexidade do mundo não dá tempo para o homem ser, por exemplo, ao mesmo tempo um grande médico e um grande engenheiro, embora num ou noutro ponto possa ter uma ideia de engenharia ou ser um engenheiro com uma ideia de medicina, mas como profissão, como aplicação total das suas forças, não é possível. Então o segredo para nós podermos desenvolver a nossa personalidade vai ser o de ver de que maneira vamos abolir no mundo a obrigação do trabalho, de que modo vamos organizar as coisas de modo a que as coisas materiais, digamos, as máquinas, trabalhem para nós. Ora, para construir as máquinas, só podemos fazê-lo sob o império do imprevisível. Nunca ninguém enamorado do imprevisível conseguiu construir uma máquina. Então foi preciso que a Humanidade vivesse completamente no domínio do previsível e no qual, provavelmente, vai ter de continuar ainda algum tempo, anos ou séculos, não sabemos, para que realmente a máquina chegue à sua máxima elaboração, cujo fim será o de nunca nos oprimir, em que só tenham que trabalhar com ela os homens que lhe tenham amor, homens que estejam apaixonados pela máquina; ao passo que hoje a maior parte das pessoas trabalha com ódio à máquina e por isso é que tanta gente tem medo das invenções técnicas, porque tem medo que elas venham a ser opressoras da Humanidade e, efectivamente, se o homem não tiver dentro de si o ideal do imprevisível, será a vítima das máquinas."
Agostinho da Silva, Vida Conversável, Assírio & Alvim, págs. 37, 38


“Estou agora a lembrar-me de uma amiga minha que acha que a partir de certa altura as pessoas deviam transformar-se todas em ciganos e percorrer o mundo. Ela acha que devia haver, de onde em onde, no mundo lugares onde se acolhessem as caravanas. No Oriente havia um local onde a caravana chegava, estava ali um tempo, administrava-se, via o que precisava, renovava o seu fornecimento e seguia depois para outro lugar. E de certo modo isso devia ser o hábito de toda a gente durante uma parte da sua vida - andar pelo mundo. E quando achasse que devia regressar, voltava ao lugar escolhido durante as viagens, porque para uma pessoa pode haver um lugar que lhe é muito mais a aldeia ideal do que aquele onde nasceu. . . então devia voltar aí, fixar-se e servir ali a outras caravanas que viessem. Pois ninguém devia morrer sem ter percorrido o mundo. E, portanto, aí está a sua ideia de ser preciso que toda a gente tenha a possibilidade de não ter muros – essa é a grande coisa no mundo!"
Agostinho da Silva, Vida Conversável, Assírio & Alvim, pág. 57

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