23.2.06

As praias de Goa



Nas leituras prévias à minha partida para Goa, tinha ficado sem saber o que pensar sobre a qualidade das praias da ex-colónia portuguesa. Rui Baptista escrevia no FUGAS que as praias goesas são "provavelmente as melhores do mundo, com areais imaculados, água a rondar os trinta graus e coqueiros a perder de vista". As fotografias que vi pareciam confirmar essa descrição, mas Miguel Sousa Tavares comentava, no livro "Sul", como é imerecida a reputação de praias como Colva ou Forte Aguada, que estão entre as que mais fama turística dão a Goa. O guia "Lonely Planet" falava no clima festivo das praias (onde se desenrolam festas nocturnas ao som do "Goa Trance"), mas avisava que, em consequência da popularidade, algumas delas tinham mudado "para lá do reconhecível" na última década. Um aviso certeiro, vim depois a descobrir.
Quem, como eu, comece a sua estada em Goa pela bonita cidade de Pangim, concluirá que não abundam os turistas naquele Estado indiano. Erro. A verdade é que a generalidade dos ocidentais vai a Goa pelas festas e pelas praias e está pouco interessada no património histórico de sítios como Velha Goa, onde se percebem as origens do cognome "Roma do Oriente".
Basta atravessar o Rio Mandovi e percorrer cinco quilómetros até às praias de Candolim e Baga para encontrar uma outra Goa. O número de ocidentais (principalmente jovens europeus, mas também, como reza a lenda, alguns velhos 'hippies' resistentes) quintuplica. Tudo está virado para o turismo. Há imensas lojas, restaurantes e hotéis nas imediações do areal e nem faltam as multinacionais de restauração, como a "Pizza Hut" ou a "Subway".
Um pouco mais a norte, no palmar que bordeja a praia de Anjuna, o gigantesco mercado das quartas-feiras é exclusivo para estrangeiros. Não se vêem por ali locais às compras, o que é sempre mau sinal para quem procura artigos mais genuínos ou pechinchas. Por entre as estátuas de deuses hindus, a roupa feminina de influência local, colorida e elegante (que nenhuma indiana usaria, por ser demasiado decotada) e as lojas de tatuagens, uma banda tocava um rock progressivo, enquanto os assistentes bebiam cerveja "Kingfisher".
No extremo sul do território encontrei a praia de Palolem, que foi um paraíso perdido até há poucos anos. Agora, está ser estragada pela ganância. As autoridades goesas tiveram o bom senso de não permitir a construção com cimento, mas, por entre as palmeiras e os coqueiros da baía, crescem desordenadamente as pequenas cabanas feitas com madeira e canas. Centenas de pessoas alojam-se nestas palafitas com poucas condições, atraídas pela proximidade do mar. O revés é que a praia ficou atafulhada de cabanas e perdeu parte da sua beleza. Mas o desenvolvimento excessivo não é o único defeito de Palolem. Como é comum a muitas praias na Índia, há grupos de indianos que assediam constantemente os banhistas com o objectivo de venderem algo (podem ser as coisas mais incríveis, como limpezas de ouvidos) ou apenas para olharem indiscretamente as mulheres de biquíni. Estas devem ser, para eles, uma visão exótica, até porque as indianas vão à praia vestidas com saris.
A sorte é que basta alugar uma scooter e dar uma volta pelas redondezas para encontrar locais idílicos e livres de chatos. Dez quilómetros para norte de Palolem deparei-me com Agonda, uma praia extensíssima e praticamente vazia. O calor era abrasador e a água do mar morna. De regresso a Palolem, comentei com Sanjay, o simpático cozinheiro de um restaurante, a maravilhosa manhã de praia de que tinha desfrutado. Com alguma ironia, respondeu:
- Daqui a três ou quatro anos será como Palolem. Palolem há cinco anos era como Agonda, um paraíso...
De facto, reparei que em Agonda já começavam a aparecer os primeiros "bungalows", ainda quase todos sem hóspedes. Nas poucas linhas que o "Lonely Planet" dedica àquela aldeia de pescadores, pode ler-se que "com Palolem a ficar sobrepovoada, é provável que a paz de Agonda não dure". Receio que tenham razão.



[Fotografias tiradas por mim, em Goa (Dezembro de 2004). O texto foi publicado em 2005]

21.2.06

há sim senhora não é da primeira divisão estou-te a dizer que existe não é o portimonense e depois o alternativo são todos amarelos a gente vê quando está a fazer zaping e está a ver um jogo da bola reconhece logo os equipamentos mas se vê uma equipa toda de amarelo e outra isso tem só a ver com as marcas um gajo vê assim é pá mas quem é que está a jogar aqui isso tem só a ver com as marcas fornecedoras de equipamento e não sei que mais pois talvez é tudo marketing este ano é o amarelo para o ano é não sei o quê houve uma altura em que o benfica tinha camisolas azuis escuras essa é que nunca ninguém engoliu muito bem essa do azul por razões óbvias pela rivalidade pois e agora o equipamento alternativo do benfica também é prá aí laranja ou coisa parecida não é laranja aquilo parece um dourado ou o que é que é aquilo é uma coisa assim acho isso inacreditável então mas o que é que tu queres o que é que eu quero olha no caso da académica sempre foi é preto e branco ponto final e acabou não espera preto ou branco estás a perceber a minha ideia existe um alternativo o alternativo que existia era quando a académica jogava com o boavista suponho ou jogava com outro clube qualquer

15.2.06





"Não tenho a certeza de ser o autor daquilo que escrevi. Não tenho a certeza de que as ideias de alguém nasçam da cabeça desse alguém"

Agostinho da Silva, um homem absolutamente extraordinário, de pensamento original, cuja memória está agora a ser celebrada. Faria 100 anos se estivesse vivo. Um utopista, mas ao ouví-lo ficamos com a sensação de que a utopia seria possível, se todos quiséssemos. O caso está muito longe de ser esse... De qualquer das formas, são imperdíveis as "Conversas Vadias" que agora estão a ser retransmitidas no Canal 2 e na RTP Memória.

14.2.06

O poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhores
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos heróis
(o medo vai ter heróis)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
intelectuais
(muitos)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos



Sim
a ratos

Alexandre O'neill, Abandono Vigiado (O livro é de 1960, o poema de 1951)

9.2.06

"Apesar de tudo, saí para a rua
com bastante naturalidade
e que vi eu? Que é isto?
(E que esperava eu ver?)"



Autografia, um documentário realizado por MIGUEL GONÇALVES MENDES em 2004, sobre MÁRIO CESARINY

Excertos de declarações de Cesariny presentes neste soberbo documento sobre a vida e a velhice do poeta:

"Não há grande consolação, porque se houvesse a eternidade era uma coisa... mas não há. Não interessa quantos milhares de anos o planeta Terra vai levar para explodir, portanto... acaba por desaparecer tudo, pfff... É muito misterioso isto tudo.
- Então, para que é que isto serve?
Serve para foder, que é muito agradável, dá muito gozo; serve para amar e serve para morrer, pronto. A criança é a máscara do velho, mas o certo é que a criança enquanto criança é mesmo criança, não é velho, etc."

"Era uma altura em que a minha gente estava viva, tanto amigos verdadeiros como gente para passar um bocado na cama. Tudo isso funcionava, com a polícia a correr atrás, a chatear... também havia maneiras de chatear a polícia. E agora nem polícia nem ladrões, é um deserto."

"Portugal sempre foi um país onde não se diz o que interessa."

"Acho que sou um poeta bastante sofrível numa época em que o tecto está muito baixo. Um grande poeta numa época em que não há Anteros, não há Camilos Pessanhas, não há Guerras Junqueiros, não há Pessoas, se quiseres. Há para aí uma data de gente a publicar livros de poesia que aquilo há-de ir parar... não sei... há-de ir parar muito longe, muito longe."

"A poesia foi um fogo muito intenso que ardeu e depois ficaram as cinzas. Não sou capaz de fazer versos porque sim, ou só para os editar, ter mais um livro. Acabou. E não julgues que não tenho saudades desses tempos em que andava pelos cafés ou pelas ruas. Nunca escrevi um poema em casa, nunca. Não me perguntes porquê. Era como voar. Foi-se..."

"antónio maria lisboa - su-i-ci-da-do
carlos luís da costa - pide
pedro oom - morto de emoção quando libertaram os presos de caxias
fernando dos santos - morto no mar
alexandre o'neill - morto morto
jean claude guimarães - não sei quem é [risada]
manuel de assunção - morto
jão vasconcelos pascoaes - morto
josé sevado - morto
mário henriques leiria - morto
ricardo décio - morto, matou a mulher, matou o gato e matou-se a si mesmo. tenho muita admiração por ele e devo-lhe muito
joão artur silva - morto
ernesto sampaio - morto, porque não conseguiu viver sem a fernanda
helena fernandes - a noiva alquímica
- e lisboa? [perguntam-lhe]
- lisboa para mim desapareceu, morreu sem enterro."

4.2.06

Crónicas de Guerra

II- Os amigos da Alameda


[Alameda, 2005; Acrílico sobre tela feito por Diogo Freitas da Costa]

Eu vejo-os na Alameda como escolhos à deriva, encalhando em esplanadas de cafés onde são indesejados, por ocuparem tardes a fio as mesmas mesas, pedindo apenas
- um carioca, ó Brito...
com uma familiaridade que não se espelha no avaro comerciante, mais preocupado com a rentabilização do estabelecimento e pouco dado a actividades filantrópicas. No outro dia um deles, ao ver que me dirigia ao balcão, pediu-me que chamasse o Brito. O homem, que não devia estar nos seus dias – nunca está nos seus dias -, grunhiu rancorosamente
- esse também está-me sempre a chamar
enquanto lamentava o buraco em que se havia metido, naquela pasmaceira de servir cariocas a velhos decrépitos e aturar o chiqueiro das tias corcundas do bairro, apenas por uns trocos que dão para manter a casa aberta, pagar a pensão de divórcio do filho, os pequenos luxos da patroa
e serviu mais um galão
Eu comecei a evitar o estabelecimento do Brito porque via nos seus olhos hostis e modos rudes o desejo de fugir daquele velório. Do velório de que faço parte. Daqueles velhos que contemplo na Alameda, barrigudos, falhados, corcundas, coxos, vestindo fatos de há vinte anos, chorando sozinhos, olhando languidamente para as coxas duma jovem que passa, sempre de óculos escuros e sinistros como ex-agentes da PIDE, inúteis, abandonados, viúvos, doentes, cheios de medicamentos, sem ninguém que passeie com eles, jogando biscas intermináveis para passar o tempo a cinquenta tostões a vaza, agarrados aos relatos domingueiros de futebol, alimentando-se de sandes mistas e pastéis de nata, desvalidos, ignorantes, esticando os 70 contos de reforma, fracos, a cair, falando sobre as novelas da TV, perversos, assustadoramente simpáticos.
No outro dia, dois deles insistiram em sentar-se na minha mesa e desafiaram-me para o dominó. A meio da jogatana, vi de solsaio o Brito a observar-nos com insuportável ressentimento. Não o compreendi: afinal, não tínhamos feito mal a ninguém. Um dos meus amigos da Alameda até lhe perguntou:
- Ó Brito, não te queres sentar e jogar connosco?

[Escrito em 30/5/01]

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