31.1.06

Kind of Blue



Miles Davis, Kind of Blue, gravado em Março de 1959 para a Columbia, com Julian "Cannonball" Adderley, Paul Chambers, James Cobb, John Coltrane, Bill Evans, Wynton Kelly

"O som torna-se claro, a direcção é clara, tocando, tocando longos acordes de sons belos, sempre com um grande "swing", porque ele sempre fora um grande "swinger". Com secções ritmicas de swing muito organizadas. Não se ouve negligência nos seus discos porque ele define muito bem o papel de cada um.
De Monk aprendeu que poderia usar as novas ideias harmónicas, mas de forma arrastada e expressiva. Não necessitava de usar o estilo barroco do bop, podia ir directo ao objectivo. Aprendeu com Monk que quando um músico tocava sete ou oito notas, Monk tocava apenas uma ou duas, mas seriam tão expressivas que teriam o mesmo impacto,ou até mais. A música de Miles fala do lado solitário e melancólico que há em cada um de nós. Mas de outro lado, ele também swinga. É um cocktail irresistível."

[Não sei quem escreveu este texto que tinha apontado, mas concordo absolutamente. E Kind of Blue é o disco de jazz de que mais gosto, ao qual regresso sem me cansar e no qual descubro sempre beleza.]

27.1.06

luto

Se tentámos desesperadamente descrever a nossa cidade, é porque não tolerávamos que escapasse a todas as definições, numa transmutação vertiginosa, sem deixar espaço à memória nem ao reconhecimento. Como o velho que regressa à casa de infância, também nós errávamos por cenários de alegria escaqueirada, por esplanadas áridas. Pela inocência esboroada, pelo que havia sido. Ignorando o fantasma da esquina seguinte, seguíamos caminho com um certo despojamento budista, esquivando-nos à nostalgia. Os nossos esforços de fixar Coimbra no papel eram em vão: a cidade transitória não tinha, afinal, mudado na essência.


Só as pessoas podem insuflar os sítios de vida, é sabido. Só elas podem, ao abandoná-los, aniquilar o seu significado. A desolação de ontem é a de hoje e as ilusões de hoje são as de ontem. Faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos faz pena os jardins serem infrutíferos

[Texto escrito em 25/5/02, a imagem é de Andrea Inocêncio, chama-se "FANTASIAS DE UM HOMEM COM UM BAGO DE UVA QUE NÃO QUERIA SER CONSUMIDO" e retrata um amigo meu de Coimbra]

24.1.06

"O contrário do que fotografamos"

"Atravessamos o estreito de Ancud, desembarcamos em Chiloé com o céu limpo de um azul inocente, e um sol frágil. É a luminosidade triste do breve Outono austral. Mesmo um viajante recém-convertido ao encanto do arquipélago intui a precariedade deste tempo solar e aconchegante. Não durará muito: logo voltarão as chuvas, as brumas, os dias cinzentos e ventosos que amaldiçoam aquelas latitudes durante a maior parte do ano.
Sempre foi miserável esta gente – o sustento arrancado a um mar traiçoeiro, riquíssimo mas caríssimo, que cobra peixes por pescadores, cardumes por naufrágios, vidas pescadas por mortes anunciadas. Esta gente sempre navegou na ténue linha que separa a sobrevivência do aniquilamento, a economia de subsistência da emigração desesperada. O bocadinho de história que lhes toca na história da Patagónia passou-se para lá dos Andes, longe desta paisagem ondulante, vital e encantada. Foram eles, os pescadores de Chiloé, que provocaram nos imensos latifúndios argentinos as grandes revoltas camponensas dos anos 20, recordadas por Chatwin e Sepúlveda nas suas obras sobre a Patagónia
(...) Castro é a cidadezinha mais importante do arquipélago. (...) As casas da ilha são, também elas, construídas e decoradas em madeira, servindo de cais de atraco a botes de madeira, soltando o fumo de fornos de lenha com que cozinham e aquecem um universo familiar contido entre quatro fachadas de madeira. Muitas fachadas estão cobertas com um motivo que recorda escamas de peixe, talvez uma forma de prestar vassalagem a tudo o que é líquido e viscoso neste átomo sólido sitiado pela imensidão do mar.
Penso na vida dura desta gente, uma vida reduzida à sua essencialidade mais espiritual: trabalho, família, igreja. Por uns momentos deixo-me levar pela fantasia de que aqui eu poderia ser feliz com esta côdea de expectativas, esta simplificação de desejos, este resíduo de actividades sociais. Se eu tivesse uma aptidão manual, uma qualificação técnica – se eu fosse um osteopata, um canalizador, um cozinheiro – poderia estabelecer-me aqui. Mas que fazer com as poucas coisas que sei fazer? A quem iria interessar as palavras que uso? Viria a escrever obituários para a agência funerária local? Deve haver uma agência funerária mesmo na mais recôndita ilha da Araucânia. Mas nestes espaços indeterminados as pessoas devem morrer tão pouco...
Stefano anda a tirar fotografias à socapa às expressões dos velhos pescadores e aos seus rostos carcomidos pela humidade salgada e pelo frio crónico de muitos anos. Tem uma nova máquina digital, com uma lente que parece um telescópio. Consegue apanhar os pormenores do rosto a grandes distâncias, como se apontasse ao alvo. Divertimo-nos com este jogo, parecemos quatro catraios com um brinquedo novo. Cada um dispara à vez, tentando capturar as expressões mais recônditas, os olhares mais significativos: tiro ao alvo à alma dos homens de Chiloé.

Instante Fotográfico

Stefano é o mais velho do grupo, eu sou o mais novo, mas na realidade temos todos a mesma idade mental. Temos a idade europeia da maturidade driblada, do matrimónio adiado, da paternidade esquivada. Somos esse «cocktail» ocidental, único no percurso da Humanidade, que mistura conhecimento e irresponsabilidade, cepticismo antigo e leveza amoral, vida fácil e experiência de vida.
Somos o contrário do que fotografamos. Pescadores pobres de rosto carcomido, suspensos entre o frio e a neblina, entre a igreja e o lar, entre a madeira e o mar. É a minha vez. Aponto cuidadosamente a um par de olhos, ponho a foco, espero que não se mexa. Disparo."

Gonçalo Cadilhe, Viajar na Patagónia (excertos de crónica publicada no Expresso de 16/04/2005)

18.1.06

Sobre a política








Ahab ocultava-se por detrás da observância desses usos para certos fins que não os legítimos; sem eles teria sido impossível exercer plenamente a sua implacável necessidade de dominar; através dele incarnava uma ditadura irresistível. Por maior que seja a superioridade intelectual de um homem, não lhe é possível dominar prática e duravelmente os outros homens sem representar uma espécie de mil comédias. É o que afasta os verdadeiros príncipes do império que Deus lhes preparou nas assembleias do mundo; deixa as mais altas honras para aqueles homens que se tornam famosos, mais devido àquilo que possuem de inferior aos príncipes do que devido às suas qualidades de superioridade sobre as massas. Mas existe um tal poderio nestas pequenas comédias, quando postas ao serviço de certas superstições políticas extremas, que não é raro vermos o mais imbecil assumir o poder. Mas quando, como no caso do czar Nicolau, a cooa do mando cinge um cérebro imperial, então a horda popular avilta-se e permanece esmagada perante a tremenda centralização. E o poeta trágico que canta o grande desejo de liberdade dos homens, não deve jamais esquecer estes factos."

Herman Melville, Moby Dick, de acordo com a tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves para a editora Estúdios Cor (1962)

13.1.06

Máximas e Aforismos

Canta, mas com os olhos bem abertos!

A perfeição é amiga da solidão e da morte.

Subserviência é coisa de ignorantes.

Todo o santo foi poeta. Todo o poeta começou por querer ser ou santo, ou o diabo. O poeta sente-se atraído pelos extremos e nunca pelo meio.

Obcecam-me as formas. "Tudo é forma, a forma é eterno vazio." A idiossincrasia é um mistério renovado.

É a vida que torna mesquinho o Homem, ou será o Homem quem faz a vida mesquinha?

"Ni Dieu Ni Maitre". À falta de uma ordem em que te reconheças, terás de te inventar todos os dias.

10.1.06

Que vergonha, rapazes

Que vergonha, rapazes! Nós práqui
caídos na cerveja ou no uísque
a enrolar conversa no «diz que»
e a desnalgar a fêmea («Vist'?Viii!»)

Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirinha à portuguesa
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar a quarta invasão francesa.

Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque»)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:

Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, Sr. O'Neill! E as varizes?


Alexandre O'Neill, Poemas com endereço (1962)

5.1.06

Harold Pinter

"In 1958 I wrote the following:

'There are no hard distinctions between what is real and what is unreal, nor between what is true and what is false. A thing is not necessarily either true or false; it can be both true and false.'

I believe that these assertions still make sense and do still apply to the exploration of reality through art. So as a writer I stand by them but as a citizen I cannot. As a citizen I must ask: What is true? What is false?
"Truth in drama is forever elusive. You never quite find it but the search for it is compulsive. The search is clearly what drives the endeavour. The search is your task. More often than not you stumble upon the truth in the dark, colliding with it or just glimpsing an image or a shape which seems to correspond to the truth, often without realising that you have done so. But the real truth is that there never is any such thing as one truth to be found in dramatic art. There are many. These truths challenge each other, recoil from each other, reflect each other, ignore each other, tease each other, are blind to each other. Sometimes you feel you have the truth of a moment in your hand, then it slips through your fingers and is lost.

I have often been asked how my plays come about. I cannot say. Nor can I ever sum up my plays, except to say that this is what happened. That is what they said. That is what they did."
(...)
"When we look into a mirror we think the image that confronts us is accurate. But move a millimetre and the image changes. We are actually looking at a never-ending range of reflections. But sometimes a writer has to smash the mirror – for it is on the other side of that mirror that the truth stares at us."
(...)
"A writer's life is a highly vulnerable, almost naked activity. We don't have to weep about that. The writer makes his choice and is stuck with it. But it is true to say that you are open to all the winds, some of them icy indeed. You are out on your own, out on a limb. You find no shelter, no protection – unless you lie – in which case of course you have constructed your own protection and, it could be argued, become a politician."

(Excertos do discurso de aceitação por Harold Pinter do Prémio Nobel de Literatura)

2.1.06


(Desenho de Rodrigo de Matos)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?